Misoginia organizada: fórum de emails de ontem é o grupo de zap de agora
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Há dez dias, a elite intelectual do eixo Rio-SP está obcecada por um podcast — com rápidos intervalos para celebrar Fernanda Torres e repudiar Donald Trump. No centro do debate, um episódio do Rádio Novelo Apresenta ("CPF na nota?") em que a escritora Vanessa Barbara relata as violências cometidas por seu ex-marido, num casamento encerrado há 14 anos.
Não bastassem os gritos, as mentiras e manipulações dentro de casa, ela era humilhada em praça pública. O seu então parceiro, aquele em quem ela confiou os seus segredos, o seu corpo, as suas vulnerabilidades, fazia dela motivo de chacota para no mínimo 14 amigos, num fórum macabro que, ali no início dos anos 2010, se sustentava num grupo de emails.
Quinze homens da "nata" literária e jornalística sudestina — homens feitos, não uns moleques — usavam aquele canal para, enquanto ninguém estava olhando, colocar as mulheres no lugar em que acham que nos cabe.
Do email pra fora, progressistas preocupados com a igualdade de gênero e de raça, com o avanço da extrema-direita, com o negacionismo climático e científico e até, imagine, com a violência contra meninas e mulheres.
Intelectuais de esquerda que condenaram prontamente um deputado que, em áudios trocados com amigos, saiu de uma cena de guerra excitado pela fila de refugiadas, "fáceis, porque são pobres". Eu pergunto: qual é a diferença?
Por baixo do verniz de aliados, são personalidades que objetificam igualmente os nossos corpos e contribuem para perpetuar essas violências. Homens que trazem a misoginia no sangue, ensinada geração após geração. Filhos, por exemplo, de assediadores, que aprenderam ao longo de anos que as mulheres valem menos do que os homens. Valem menos, são menos competentes, merecem menos postos de decisão e mais louça pra lavar. E nenhum respeito.
Catorze anos depois, o que Vanessa Barbara propõe ao compartilhar sua história não é cancelar o ex, André Conti, ou levar à falência a editora da qual ele é sócio, a Todavia. Muito menos "monetizar um trauma". Barbara estende a mão a outras vítimas, propondo um corte na teia de abusos feito por meio da palavra. Essa história "é sobre mulheres que se unem pra se defender", ela diz. Sem se deixar vencer pelo medo ou pela força da união masculina.
Essas são armas para garantir que continuem a nos violentar. Sem que sejam expostos e confrontados, não aprendem ou evoluem sozinhos, como fazem crer os que argumentam excesso de juventude no ato da violência — mais uma vez, a imaturidade à qual as meninas nunca têm o direito, mas que serve sempre bem aos meninos. Mais uma vez, a responsabilidade para que mudem recai sobre nós.
E, muitas vezes, a gente prefere o silêncio — ou precisa dele. Porque os homens misóginos são os nossos contratantes, os pais dos nossos filhos, os chefes que decidem se vamos continuar a publicar os nossos textos. Porque os homens se organizam e se defendem, numa espécie de gaslighting coletivo, como vimos na esteira da publicação do podcast.
O tal fórum de emails no qual Vanessa Barbara e outras de nós foram alvo de ódio e desprezo pode até estar inativo. Mas esse tipo de confraria masculina ainda existe, à esquerda, à direita, com ou sem disfarce.
Hoje, como há uma década, ainda se fazem "eleições" de mulher mais gostosa. Ainda se comentam detalhes de como fomos manipuladas e quão vulneráveis estamos pro próximo ataque. Ainda nos desqualificam, riem da nossa cara, exibem nossas fotos ou vídeos sem consentimento, e fazem tudo isso como um reforço patético da própria masculinidade — porque, pros homens, há muitos séculos, ser macho é ter domínio sobre o corpo da mulher.
A pesquisadora Valeska Zanello, da Universidade de Brasília, se debruçou sobre grupos masculinos de WhatsApp num estudo publicado em 2021, no qual registrou as violências que circulam por ali. Rir de estupro e feminicídio, sexualizar crianças e tratar mulheres como pedaços de carne foram algumas das coisas que apareceram.
Numa entrevista à repórter Camila Brandalise, Zanello comenta a única coisa "edificante" nas conversas que analisou: a "broderagem". Muitos daqueles homens, ela diz, não concordam com as postagens mais violentas, mas ficam por ali, em silêncio, "porque querem continuar a frequentar a 'casa dos homens'".
É a esse espetáculo, o da 'broderagem', que estamos assistindo desde que o episódio foi ao ar, em 16 de janeiro. Barbara fez sua parte, a de romper o silêncio. Agora é preciso que os homens façam a sua, romper a conivência confortável de quem finge que não vê.
5 comentários
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Wilson Roberto Tozzi
Cadê a reportagem doLulinha filho deLula. AgressorDeMulheres. Aquele que disse que nenhum juiz acreditaria porque eu sou doPT.
Angela Fleming
Um silêncio insurdecedor...
Joao Gilberto Candido
Tudo bem que a história da Vanessa Bárbara é triste e tals, mas essa obsessão em falar do assunto só mostra o quanto "a elite intelectual do Eixo Rio-São Paulo está completamente desocupada e entediada das coisas que realmente interessam na vida...