Cristina Fibe

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Opinião

Fenômeno 'Adolescência' joga luz sobre o perigo da machosfera digital

Jamie faz xixi nas calças quando a polícia invade seu quarto. Ele é um menino de 13 anos, e ouve que vai ser preso por suspeita de homicídio. Seus pais e sua irmã gritam e choram, sem poder defendê-lo.

É o início de "Adolescência", série da Netflix em quatro episódios, cada um filmado num plano-sequência perfeito, sem cortes, um desafio técnico cujo resultado coloca a produção no patamar de obra-prima.

O objetivo, segundo os roteiristas, não é solucionar o mistério sobre a autoria do crime, mas entender em que tipo de sociedade um menino é capaz de acabar com a vida de uma menina.

O ator e criador Stephen Graham diz que teve a ideia ao ler duas notícias, com distância de alguns meses, de meninos que mataram meninas, a facadas.

Se Jamie é só um garoto, se ele ainda faz xixi nas calças e dorme com um bicho de pelúcia, de onde poderia sair tanta violência? Se ele não tem discernimento, autonomia e capacidade de entender a gravidade e as consequências de um assassinato, de quem é a culpa?

Os autores escapam de explicações fáceis — um pai violento, um lar abusivo, grandes privações financeiras. Jamie não tem esses problemas. Ele vem de uma família comum, com pai e mãe que ralam e tentam o tempo todo acertar. Sua irmã mais velha é sociável e carinhosa. Seu pai fica a seu lado, atento e preocupado com o seu bem-estar. A relação do marido com a mãe do menino é relativamente horizontal, sem sinais de maus-tratos ou de opressão.

Ao fazer essa escolha, os roteiristas dividem o problema com a gente. Fica claro que os adolescentes saíram do controle das escolas e dos adultos responsáveis por eles. Imerso no mundo digital que acessa dentro do seu quarto, Jamie vai se tornando um desconhecido dos pais.

O policial que investiga o caso não consegue sequer entender a linguagem em emoticons exposta nas redes sociais do menino e da vítima.

Quando o filho do investigador dá um toque nele sobre a vergonha que está passando ao interrogar adolescentes, ouve palavras como "incel" e "red pill". E está aí a primeira dica do "motivo" que tanto procura.

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Jamie caiu na rede digital dos masculinistas, homens que alimentam e justificam o ódio às meninas e mulheres, incentivando a violência contra elas.

O menino acredita na teoria conspiratória de que 80% das mulheres só se interessam por 20% dos homens, com base em sua beleza ou riqueza, e que o resto, no qual ele se inclui, será eternamente rejeitado. Daí vem o termo "incel" — são os celibatários involuntários, ou seja, cujo fracasso romântico ou sexual é culpa das mulheres que os rejeitam.

Jamie é só um menino, mas a machosfera, ou manosfesra, é poderosa e manipuladora. Comandada por homens adultos — alguns deles influenciadores com milhões de seguidores — e fomentada pelo aparente e criminoso descuido dos algoritmos, a comunidade masculinista se une no ódio às mulheres.

Uma armadilha atraente para meninos em busca de pertencimento. E um problema, como mostram os criadores da série, de responsabilidade coletiva, pra ser discutida pelas escolas e pelo poder público.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.