Topo

Débora Miranda

Após morte de amigo, ultramaratonista volta a montanha e supera medo

A ultramaratonista Fernanda Maciel - Divulgação
A ultramaratonista Fernanda Maciel Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

06/09/2020 04h00

"Você é uma supermulher, não?"

Eu fiz essa pergunta a Fernanda Maciel, porque para mim ela é o que mais se aproxima de alguém da vida real que tem superpoderes. Ela riu e respondeu que não. Mas eu sei a verdade.

Fernanda corre ultramaratonas, que, por definição, são provas mais longas do que os 42k de uma maratona. Mas essas corridas podem ser beeeeem mais longas do que 42k. E em ambientes bastantes inóspitos, como montanhas com neve.

O desafio, para a atleta, nem sempre é a distância. Muitas vezes é o tempo do percurso. Ou as dificuldades climáticas. Eventualmente, a motivação está no risco da travessia. E em tempos de pandemia, quando todas as provas estão suspensas, Fernanda estabeleceu uma meta pessoal: escalar duas montanhas num período de 24 horas.

Os alvos: Grand Paradiso e Matterhorn. As montanhas ficam entre França, Suíça e Itália, e ela subiu pelo lado italiano. "Meu desafio no Grand Paradiso era subir sem corda. É muito íngreme, exige muita técnica, e eu queria ser rápida. Eu começo a 1.900 metros, lá é muito alto e falta oxigênio", conta Fernanda. Nada com que ela não tenha conseguido lidar. E deu-se mais um recorde feminino: foram 2h40 para subir, e o trajeto completo 4h03. Normalmente o percurso é feito em dois dias.

Mas na sequência vinha o mais difícil: o temido Matterhorn, onde Fernanda perdeu um amigo. "Ele era meu companheiro de apartamento e trabalhava como guia de montanha. Veio uma avalanche e matou ele e o escalador que estava junto. É uma montanha perigosa e, para mim, era um desafio espiritual, precisava tentar vencer esse medo."

Esse receio já havia frustrado uma tentativa anterior de Fernanda de escalar o Matterhorn. "Estava muito tomada pelo medo. E, quando está assim, a cabeça bloqueia e faz você paralisar. Então, eu não consegui antes." Uma semana antes do projeto, cogitou desistir. Achou que não conseguiria novamente. "Pensei: 'Vou ser ridícula, vou ter tanto medo. Não adianta, eu não consigo, não vou fazer'."

Fernanda Maciel celebra a chegada ao topo do Matterhorn - Divulgação - Divulgação
Fernanda Maciel celebra a chegada ao topo do Matterhorn
Imagem: Divulgação

Fernanda participa há dez anos das provas mais importantes do mundo de ultramaratona. Já correu em cinco continentes. "Fui a primeira mulher a conseguir subir e descer correndo o Aconcágua. Tenho o recorde do Kilimanjaro, que é a mais alta montanha da África. Eu corro 900k [supermulher, lembra?], tenho muita resistência. O negócio é passar seis, sete horas sentindo medo. É muito tempo nesse estresse."

Mas a experiência empurrou Fernanda montanha acima. Ela partiu às 3h da manhã. Conta que estava ouvindo música. "Ouço música quando sinto medo. Ela tira meu foco dos barulhos da natureza e consigo focar na minha passada da corrida. Desta vez eu estava muito mais forte. Ter feito o recorde no Grand Paradiso me deu mais confiança. Me concentrei no projeto em si, na oportunidade de estar ali e de enfrentar novamente [aquela montanha]. Isso me deu mais coragem. Eu tentei não pensar no passado, só no presente."

Fernanda diz que sabe respeitar os próprios limites e que aprendeu que, às vezes, é bom sentir medo para não se colocar em riscos que possam custar a própria vida. "Eu não tenho medo da morte, mas isso falando da boca para fora. Quando estou em uma situação e vejo que se escorregar eu posso morrer, aí tenho medo. E eu tinha medo de sentir medo nessa montanha. E desse medo me bloquear. Mas aprendi a aceitar. Só é preciso saber lidar com ele. Nesse caso, mesmo eu tendo um pouco de medo, ele não era maior do que eu ou do que a minha vontade de chegar ao topo."

No topo do Matterhorn, como acontece em tantas montanhas, uma cruz. Cumes de montanhas tendem a ser locais sagrados para os escaladores, por significarem a vitória de um grande desafio e marcarem o momento que antecede outro —descidas tendem a ser tão perigosas quanto as subidas. Fernanda lembra que quando começou a enxergar a cruz, sentiu a coragem ir aumentando.

"Na minha cabeça, quando eu chegasse ao topo ia ser a parte mais difícil. Dei cinco passos e era fácil. Meu Deus, cheguei! Tinha um cara na minha frente, sem corda. Ele escorregou, caiu e quase se matou. Não dá para relaxar. Continuei com cada passo devagar, focada, até encostar na cruz. E aí não consegui esconder as lágrimas, chorei de soluçar, mesmo. Parece que todo o medo que eu estava engasgado saiu de mim, me libertou. Foi incrível e inesquecível. Me tornei outra Fernanda."