Após morte de amigo, ultramaratonista volta a montanha e supera medo
"Você é uma supermulher, não?"
Eu fiz essa pergunta a Fernanda Maciel, porque para mim ela é o que mais se aproxima de alguém da vida real que tem superpoderes. Ela riu e respondeu que não. Mas eu sei a verdade.
Fernanda corre ultramaratonas, que, por definição, são provas mais longas do que os 42k de uma maratona. Mas essas corridas podem ser beeeeem mais longas do que 42k. E em ambientes bastantes inóspitos, como montanhas com neve.
O desafio, para a atleta, nem sempre é a distância. Muitas vezes é o tempo do percurso. Ou as dificuldades climáticas. Eventualmente, a motivação está no risco da travessia. E em tempos de pandemia, quando todas as provas estão suspensas, Fernanda estabeleceu uma meta pessoal: escalar duas montanhas num período de 24 horas.
Os alvos: Grand Paradiso e Matterhorn. As montanhas ficam entre França, Suíça e Itália, e ela subiu pelo lado italiano. "Meu desafio no Grand Paradiso era subir sem corda. É muito íngreme, exige muita técnica, e eu queria ser rápida. Eu começo a 1.900 metros, lá é muito alto e falta oxigênio", conta Fernanda. Nada com que ela não tenha conseguido lidar. E deu-se mais um recorde feminino: foram 2h40 para subir, e o trajeto completo 4h03. Normalmente o percurso é feito em dois dias.
Mas na sequência vinha o mais difícil: o temido Matterhorn, onde Fernanda perdeu um amigo. "Ele era meu companheiro de apartamento e trabalhava como guia de montanha. Veio uma avalanche e matou ele e o escalador que estava junto. É uma montanha perigosa e, para mim, era um desafio espiritual, precisava tentar vencer esse medo."
Esse receio já havia frustrado uma tentativa anterior de Fernanda de escalar o Matterhorn. "Estava muito tomada pelo medo. E, quando está assim, a cabeça bloqueia e faz você paralisar. Então, eu não consegui antes." Uma semana antes do projeto, cogitou desistir. Achou que não conseguiria novamente. "Pensei: 'Vou ser ridícula, vou ter tanto medo. Não adianta, eu não consigo, não vou fazer'."
Fernanda participa há dez anos das provas mais importantes do mundo de ultramaratona. Já correu em cinco continentes. "Fui a primeira mulher a conseguir subir e descer correndo o Aconcágua. Tenho o recorde do Kilimanjaro, que é a mais alta montanha da África. Eu corro 900k [supermulher, lembra?], tenho muita resistência. O negócio é passar seis, sete horas sentindo medo. É muito tempo nesse estresse."
Mas a experiência empurrou Fernanda montanha acima. Ela partiu às 3h da manhã. Conta que estava ouvindo música. "Ouço música quando sinto medo. Ela tira meu foco dos barulhos da natureza e consigo focar na minha passada da corrida. Desta vez eu estava muito mais forte. Ter feito o recorde no Grand Paradiso me deu mais confiança. Me concentrei no projeto em si, na oportunidade de estar ali e de enfrentar novamente [aquela montanha]. Isso me deu mais coragem. Eu tentei não pensar no passado, só no presente."
Fernanda diz que sabe respeitar os próprios limites e que aprendeu que, às vezes, é bom sentir medo para não se colocar em riscos que possam custar a própria vida. "Eu não tenho medo da morte, mas isso falando da boca para fora. Quando estou em uma situação e vejo que se escorregar eu posso morrer, aí tenho medo. E eu tinha medo de sentir medo nessa montanha. E desse medo me bloquear. Mas aprendi a aceitar. Só é preciso saber lidar com ele. Nesse caso, mesmo eu tendo um pouco de medo, ele não era maior do que eu ou do que a minha vontade de chegar ao topo."
No topo do Matterhorn, como acontece em tantas montanhas, uma cruz. Cumes de montanhas tendem a ser locais sagrados para os escaladores, por significarem a vitória de um grande desafio e marcarem o momento que antecede outro —descidas tendem a ser tão perigosas quanto as subidas. Fernanda lembra que quando começou a enxergar a cruz, sentiu a coragem ir aumentando.
"Na minha cabeça, quando eu chegasse ao topo ia ser a parte mais difícil. Dei cinco passos e era fácil. Meu Deus, cheguei! Tinha um cara na minha frente, sem corda. Ele escorregou, caiu e quase se matou. Não dá para relaxar. Continuei com cada passo devagar, focada, até encostar na cruz. E aí não consegui esconder as lágrimas, chorei de soluçar, mesmo. Parece que todo o medo que eu estava engasgado saiu de mim, me libertou. Foi incrível e inesquecível. Me tornei outra Fernanda."
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