O que sua rotina de skincare tem a ver com a elitização das tendências
Mas, afinal, de onde surgem as tendências? Não lembro exatamente quando o termo passou a ser tão relevante, mas o fato é que, de uns tempos pra cá, tudo é sobre tendências. De moda, de maquiagem, de mercado, de unhas, de corte de cabelo, de cor...
Pra gente observar como essas coisas acontecem, um exemplo rápido. Na virada do milênio, a gigante Pantone, empresa que criou uma surpreendente linguagem objetiva e universal para catalogar cores, apresentou o conceito de "cor do ano".
Talvez você não soubesse exatamente por que, mas se lembra como, em 2016, de repente parecia que tudo tinha ficado rosa? Roupas, maquiagens, paredes, canecas, sapatos, anúncios... Pois é, rapaz, era o tal do milennial pink, oficialmente batizado de "rose quartz", cor do ano naquela ocasião. E não para por aí, viu? Atualmente, a empresa vê a expansão de seus negócios chegando a diversas áreas. Isso vai desde o licenciamento de produtos até consultoria para marcas e empresas, passando por hotéis e cafés Pantone, reforçando cada vez mais a presença das cores padrão na nossa rotina.
Quando vem o anúncio da tal cor do ano, toda uma indústria se movimenta e começa a produção de itens naquela cor, inclusive na maquiagem. Estamos falando de muita grana! E isso não é obra do acaso. Os caras fazem pesquisas superaprofundadas, ligadas a comportamento, emoções e questões sociais. Aí ela acaba se tornando uma representação em cor para o momento social, da época.
E quer saber da maior? Ainda que a gente esteja cagando pra cor do ano, em algum momento somos seduzidos por ela, usamos uma make inspirada nela ou até compramos um item daquela cor. É influência que chama?
Vamos falar de beleza
Na esfera das tendências de beleza, para além das cores, podemos nos perguntar também: de onde veio a tendência do delineador asa de anjo? E a "nova" tendência de pele natural, com menos maquiagem e mais verdade? E a tendência do k-beauty?
Em relação à k-beauty (k de Korean: coreano) vou fazer uma aposta ousada e dizer que veio da Coreia (risos). Mesmo vinda de tão longe, foi amplamente difundida e até incorporada na rotina aqui dos trópicos, com efeitos nem sempre positivos, já que estamos falando de peles, climas e hábitos muito particulares. Aqui, inclusive, a tendência se sobrepõe ao resultado.
Por isso que, antes mesmo de entender de onde elas vêm, talvez fosse o caso da gente se perguntar: com que público a maioria dessas tendências se comunica (ou deixa de comunicar)? Quem pode acompanhar e realizar os desejos despertados por tais tendências?
É sugestivo pensar em como a grande mídia apresenta as diferentes tendências de moda, beleza e comportamento, sempre com um recorte específico. As tendências que abordamos são eminentemente as que retratam e comunicam com um certo público. E aí tem toda uma galera deixada de fora. Toda uma população repleta de diferentes culturas e modos de ser é deixada de lado.
É basicamente como se a única estética possível fosse a do povo branco, leitor de autoajuda, que trocou a Blockbuster pela Netflix e acredita que tomar aquelas cervejas da garrafa verde é um dos grandes símbolos de vitória da vida.
É sintomático que a maior parte das pessoas desse grupo esteja (ou acredite estar) inserida num padrão eurocêntrico. Que se acredita uma "gente evoluída" e desconsidera todo o resto, outras culturas e outras realidades como possibilidade (alguma lembrança aterrorizante lhe vem à mente?). É como se houvesse um grande condomínio existencial, repleto de gente branca de pele radiante, tratada com o melhor do skincare, protegida por cercas elétricas e vestida em looks confy (precisa ser assim, em inglês e com uma dose de fofura). E essa seria, então, a única realidade possível de ser vivida e retratada.
Fora da bolha
Quão saudável e enriquecedor pode ser o exercício da observação para fora da nossa cerca? Dar uma volta nas ruas. Pegar um busão com olhos atentos e curiosos. Ir parar em outro bairro e apenas caminhar nas ruas olhando ao redor. Um passeio pelo centro, que tal? Vamos pensar nesses passeios com os olhos de quem busca por tendências, de quem busca estímulos, de quem busca enxergar o outro, o diferente.
Acho muito provável que, assim, as pessoas enxerguem para além de estéticas e configurações familiares e aventadas pela grande mídia e mercado. De repente, teremos foco em corpos, caras, modos e makes em mundos que vão para longe do escritório, happy hour, festinha hypada em Santa Cecília, crossfit, barzinho do Itaim, feriadão no Litoral Norte, balada country ou mesmo o feed do Insta (assim, com intimidade, é ainda mais meaningful).
Mesmo as tendências aparentemente mais engajadas, politicamente corretas e alinhadas com os discursos atuais podem ter um recorte de classe. Não são alcançadas por todos e, ainda assim, ambicionam figurar como consenso. Vamos dar uma espiada na beleza (onde eu deveria permanecer, né?). Por exemplo, vamos avaliar a tendência do culto ao skincare, da pele supertratada e saudável, com dermatologistas, cremes e rotinas elaboradas. Ainda que eu esteja pessoalmente inserida nesse contexto, tenho plena consciência do puta privilégio que é ter esses acessos e de que não é natural para todos, especialmente falando da realidade do nosso país. Mesmo com adaptações na rotina e limitações na quantidade de produtos, poucos conseguem manter esse padrão de consumo.
Lembro bem uma matéria que li aqui no Universa sobre tendência de unhas na periferia. Como foi enriquecedor e como me fez pensar. Eu me achava super cool, porque tinha decidido há um tempo deixar de fazer as unhas. Pude entender quantas camadas de expressão visual e social haviam no simples fato de fazer as unhas e usá-las como ferramenta de afirmação de um status. Um status cheio de significado e luta, muito além de qualquer leitura dinâmica ou superficial. Aquelas unhas longas e adornadas, que me causavam estranhamento e dúvidas sobre como era a rotina daquelas mulheres, também carregavam uma importante mensagem sobre elas terem a chance de cultivar aquelas unhas. Sobre como elas não estavam sujeitas a afazeres domésticos ou braçais e, portanto, podiam exibir as unhas como conquistas.
No fim das contas, tendência pode ser algo altamente questionável. Nela acaba se estimulando que as pessoas olhem para os mesmos lugares, fiquem cada vez mais parecidas e desconsiderem o que não veem ou não entendem. Qualquer possibilidade de diferença ali é descartada e vista como sinal de esquisitice, de erro. Talvez o grande lance seja esse excitante exercício de olhar, olhar de novo e tentar viajar pros diferentes lugares que cada elemento estético (ou sua ausência) pode nos levar.
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