Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
'Posso te ligar?' é o pedido mais ousado e temido dos últimos tempos
Imagina só o atrevimento de uma pessoa que ousa passar a mão no telefone, quer dizer, no smartphone, e LIGAR para uma outra. Eu mesma tava nessa de considerar uma ousadia receber uma ligação. Uma pessoa falando do outro lado da linha? Ao vivo? Nesse mesmo espaço, tempo e hora, querendo estabelecer diálogo, uma comunicação fluída? É um absurdo! Um lance em que você precisaria escutar o que é dito e articular na hora com algo que faça sentido naquele contexto, algo que exija cognição? É verdade, parece mesmo um esforço sobre-humano.
Esse tablete eletrônico, que carregamos pra lá e pra cá o tempo todo, o qual cringemente ainda chamamos de telefone, pode servir pra muitas coisas: pedir comida, descolar um date, fazer compras (de produto de limpeza a móveis), ler, escrever, ouvir música, produzir e consumir conteúdo, pagar contas, trabalhar e tantas outras coisas que nem imagino. Mas ligar? "Vade retro". No máximo uma reunião virtual, por videoconferência, por obrigação.
Os aparelhos mais modernos têm até assistentes virtuais, como Siri, que fazem quase tudo. Respondem perguntas, fazem buscas na Internet, aumentam volume, descobrem o nome da música que tá tocando no rolê, agendam compromissos e me lembram de coisas que, sozinha, não seria capaz. Siri recomenda restaurantes, me diz onde é o metrô mais próximo, me conta sobre a previsão do tempo e até canta. Siri também pode, vejam só, ligar pros meus contatos, mas isso nunca peço.
A gente nem considera mais nossos tabletes como um telefone. Ironicamente, não é mais um baguio que gostamos de pensar como um facilitador da comunicação.
E as mensagens de áudio? A gente poderia pensar que elas vêm com esse tempero mais humanizado, uma espécie de ligação com (longas) pausas. Mas quase sempre a gente só quer mandar áudios por conveniência nossa, pra comunicar alguma coisa bem rápido, tirar aquilo da frente, sem perder tempo digitando. Pronto, resolvido. Mandei o áudio. Como se o envio de áudios fosse um passe de mágica. Recebê-los, no entanto, é um saco: "Que pessoa atrevida, egoísta! Manda áudios de mais de um minuto!". Nesse caso, podemos acelerar a mensagem, pra dar conta com agilidade. A gente escuta o áudio acelerado, enquanto lê um e-mail e finge que conversa com um vivo à nossa frente. Tudo resolvido. Como somos eficazes!
Mas ligar? Jamais. Não se liga mais pra ninguém. E, se isso for absolutamente necessário, você manda uma solicitação de ligação dizendo a hora, razão e duração aproximada. Se for realmente necessário ligar pra alguém sem a solicitação de ligação, você já começa a conversa pedindo desculpas. Em seguida, peça desculpas por existir.
Visita sem noção
Quando vim morar em São Paulo, percebi que passou a me impressionar o fato das pessoas, às vezes, colarem na tua casa assim, sem mais nem menos. De repente, plim, plim, plim, plim, toca o interfone. Minha primeira reação era perguntar pra quem tava comigo: "Tá esperando alguém?". Se a resposta fosse negativa, atender não era mais uma opção. Ainda falava entre dentes: "Que pessoa mais sem noção, aparecer assim na casa dos outros sem avisar!".
Nesse fio de ideias, comecei a pensar em como era antes, de como era (é) no interior. Janelas e portas abertas, as pessoas colando assim, na maciota. Quando muito, umas palminhas na frente da residência, sucedidas dessa espécie de aviso: "ô de casa". Quando falamos "ô de casa", fica claro que temos ciência de que há alguém ali. Assim, esperamos que mesmo uma negativa à visita seja comunicada olhos nos olhos.
Corta para hoje. Vivemos enclausurados em casas, baias, latas de alumínio e encerrados nos nossos tabletes fazedores de tudo, exceto de qualquer contato possível que exija alguma presença.
Ousada como sou, tentei ligar pra minha mãe hoje. Do alto dos seus 85 anos, ela me comunicou com orgulho o cancelamento de sua linha fixa. Um número icônico, no qual recebemos e fizemos ligações históricas. Invejosos dirão que sou/estou saudosista e antiga, ao que responderei: "Só acho que estamos nos perdendo". De agora em diante, vou tentar sorrir ao toque do meu telefone e responder com simpatia, desde que não seja uma máquina atrevida se fazendo passar por gente. Aliás, cheguei a contar que agora são as máquinas que ligam pra você?
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