Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Mulher nenhuma - nem mesmo as celebridades - deveria precisar de maquiagem
"Sou latina, eu preciso de maquiagem!" Escutei essa afirmação de uma grande celebridade que maquiei certa vez.
Quando ouvi isso, me pus a pensar. Já conhecia bem as preferências estéticas da pessoa em questão. Nesse trabalho, havia uma direção artística que precisava ser respeitada. Digo isso para explicar que não se tratava das preferências de cada um ali, mas sim da direção que foi alinhada por quem tava com a batuta, com quem tava responsável por amarrar todas as pontas - styling, beleza, cenário, mood (prometo esmiuçar isso tudo futuramente, em outro texto).
Em geral, esses "detalhes" são tratados com todos antes, inclusive com agentes das celebridades. Porque, afinal, a pessoa precisa saber pra onde tá indo aquilo ali, entender se está à vontade para emprestar sua imagem desse modo. Ou seja, nada era uma completa novidade, nem surpresa (pelo menos, não deveria ser) para os participantes.
Quando se trata de celebridades, especialmente as grandes, tem sempre uma emoção (seria melhor dizer tensão?) que se instaura antes mesmo da chegada da realeza. Já trabalhei com algumas. Para mim, é sempre um momento intrigante. Gosto de saber da pessoa, de sacar e entender quem está por trás da personagem e como esse ser humano se investe desse poder. Não me sinto intimidada, tampouco tenho ganas de reverenciar. Tenho ganas de saber.
Dessa pessoa, uma das primeiras coisas que ouvi foi isso "Sou latina, eu PRECISO de maquiagem". Essa conjugação do verbo precisar, feita assim, com tanto rigor, foi muito reveladora e impactante pra mim. Os diálogos que se deram depois, se deram na minha cabeça. Do lado de fora, sorri de modo acolhedor e tentei usar meus parcos recursos diplomáticos para respeitar o que havia sido alinhado com a direção criativa e incorporar, dentro do possível, os anseios da celebridade. Não se trata de lutar no gel e bater o pé. É uma delicada arte, como manipular finíssimos cristais.
Entre os tantos diálogos mentais que tive, me veio isso: "Também sou latina e NÃO PRECISO de maquiagem". Posso querer usar, posso gostar de usar, mas não preciso.
Aí Dona Celebridade lançou um ponto mais que importante e pertinente: "Nas referências, só tem europeias!" Brilhou nessa. Era verdade, vacilo de quem montou o moodboard... (vacilo ou repetição de estrutura e falta de sensibilidade?).
E emendou: "Elas não precisam de make, são lindas". Mais arregalar de olhos.
Que tipo de "batata frita acompanha?" vem com essa afirmação? A de que mulheres brancas, as caucasianas, podem se dar ao luxo de usar o que querem, quando querem, se querem? Sim, até semana passada podiam. Podiam inclusive figurar como estandartes da beleza natural, sem a necessidade dos tantos recursos de transformação e técnicas de maquiagem que as coloquem no molde, porque, afinal, elas são (eram, vinham sendo...) o molde.
O rosto perfeito, definidor dos rumos da beleza, é um rosto branco, com características de gente branca. Aqui e ali, sequestros de elementos raciais que remetam ao que se convencionou entender como sexy, como lábios grossos e olhos puxados. Desde que colados numa cara branca, claro. O famoso "exótico".
Esse episódio com a celebridade já tem alguns anos. Mas, ainda hoje, com todos os avanços em pautas que abordam os padrões estéticos e suas origens, é muito, muito comum ver grandes símbolos de beleza e sensualidade se rendendo a tantos desses moldes antigos
É absolutamente comum que a mulher considerada a mais gostosa do panteão das gostosas solicite sua maquiagem com: MUITA base, contornos que lhe confiram "aquele tipo de rosto", nariz afinado, lábios aumentados e, por favor, nunca, sob nenhuma hipótese, deixe de colocar cílios postiços gigantes. Cabelo também, muito cabelo! Muito aplique. Afinal, se não puder bater o cabelo, é quase como se não pudesse ser sexy. Conforto? Esquece. Imagina lidar com tudo isso em temperaturas de 40 graus. A essas mulheres não é dada a opção do conforto. E quer saber mais? Elas gostam. Foram levadas a acreditar que só assim são gatas, maravilhosas, deusas sexies. Então, todos esses elementos são considerados indispensáveis.
Já disse e repito - é maravilhoso poder se transformar. Poder usar todos os infindáveis recursos atuais para brincar com fantasia. Mas reconhecer-se bela e desejável APENAS quando se está de um certo modo, dentro de um certo perfil, é cruel e encerra muitos, muitos símbolos e opressões.
Há que se ficar atenta. Abrir mão e queimar coisas quando necessário. Ter esse guidão você mesma. Hoje eu quero ser assim, hoje quero usar isso, hoje não quero usar nada. Latinas não têm que nada em termos estéticos. Ou melhor, talvez tenham, sim. Tenham que ser validadas como mulheres lindas e não apenas símbolos objetificados de uma sexualidade construída só para agradar aos homens.
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