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Fabi Gomes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A ética digital e os relacionamentos em tempos de WhatsApp

"Compartilhar textos, áudios e imagens sem autorização, acho grave em diversos níveis" - Getty Images
"Compartilhar textos, áudios e imagens sem autorização, acho grave em diversos níveis" Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

12/04/2022 04h00

Esses dias, por obra do mero acaso e da curta distância, o vento me trouxe a conversa da casa ao lado. Um grupo muito animado de convivas bebia e falava ruidosamente sobre suas vidas e experiências. Suas vidas, logicamente, incluíam a vida dos outros. As experiências, por sua vez, incluíam as experiências sexuais, claro.

Tudo muito humano e natural até aqui. Aí chegaram ao ponto no qual uma das pessoas lança-se a narrar uma de suas últimas incursões românticas, de modo jocoso, vaidoso e descuidado. Descuidado, porque ela não só gabava-se sobre quão pouco esperta a outra pessoa era, mas também porque não hesitou em compartilhar as mensagens trocadas, lendo-as em voz alta e expondo com muito orgulho os áudios trocados entre ambos.

Aparte o curioso e relevante (ou seria melhor dizer revelante?) fato de ter passado boa parte da noite falando com desdém de alguém aparentemente desimportante e tedioso, chama muito atenção a naturalidade com a qual a pessoa dividia intimidades trocadas com alguém que não estava presente e, muito provavelmente, não fazia a menor ideia desse protagonismo numa rodinha animada, regada a galhofas e brejas.

Agarrei uma taça de vinho, apertei o olho, apurei o ouvido e me posicionei em lugar privilegiado para saber mais daquilo. Confortavelmente escutando e cuidando da vida dos outros, fiquei pensando em situações onde possa ter feito o mesmo. (Tive a discrição de não olhar. Não seria capaz de fazer um retrato falado, só fiz isso pra vir aqui contar pra vocês...)

Sim, é uma época louca, acelerada. A gente passou tanto tempo sem se reunir, que agora parece que tá rolando esse afã de extravasar, falar, beber, gritar, dançar, compartilhar. Mas, pera lá, era bom dar uma respirada, né, não? Dentro de nossos discursos, seria de bom tom tentar pensar nesses outros enquanto existência real, permeável por sentimentos e com direito a ter sua privacidade respeitada.

É meio natural, quando a gente tá entre amigos, falarmos dos dates, daquela pessoa insuportável do trabalho, dos perrengues da vida em família e tals. Agora, isso de compartilhar textos, áudios e imagens sem autorização, acho grave em diversos níveis. No tête-à-tête com aquela melhor amiga que vai levar teus segredos pra tumba já é questionável, imagine numa rodona repleta de gente.

Têm sido cada vez mais comum as pessoas compartilharem mensagens de outras pessoas em grupos de WhatsApp. Pra xingar, fazer pouco ou mesmo por outras razões. A gente se atrapalha com tecnologia, entendo. Ela meio que se impôs em nossas vidas de modo definitivo, tudo muito rápido. Outro dia, a gente tava ali no orelhão, ditando uma mensagem pro Pager de alguém. Agora, isso. Éramos mais cuidadosos, criteriosos e, inclusive, econômicos. Pagava por palavra, né? Telegrama sei que sim. Pensa só em quanta confusão a gente pode se meter quando fala e escreve livremente. Tretas históricas já rolaram entre autores pela profusa e emocionada troca de cartas. Um ótimo lugar pra falar livremente e sem censura ainda é o divã. Só ali.

Sobre a ética digital, acho que nem precisamos nos valer do digital pra falar de ética. Dá pra pensar na ética dos relacionamentos. Se a gente respirar um minutinho, avaliar o que vai falar, porque que vai falar e como aquilo pode afetar o outro e o entorno, já daremos uma boa segurada nas nossas exibidas e ruidosas marimbas.

Tô aqui com a forte impressão de que a pessoa brabona e descolada do discurso da casa ao lado tava muito a fim de escutar o apito de mensagem recebida da pessoa loser de quem ela tanto desfez. Só acho... Ah, o ser humani!

P.S.: Sei que muitos aí devem estar pensando "a gata cobrando respeito à privacidade, enquanto ouve propositalmente conversa alheia pelo muro e depois escreve sobre numa coluna num portal de alcance nacional". Mea culpa. Mea máxima culpa. Vejam só. A invasão à privacidade é tão normalizada na sociedade, que qualquer acusador se torna acusado nesse quesito, bastando questioná-lo. De minha parte, me desculpo com o argumento de que a situação me abriu caminho pra refletir e que, minimamente, tentei preservar as identidades dos envolvidos, já que não resta claro nem quando nem em que casa tudo isso se deu.