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Fabi Gomes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quando treino, grito, sofrimento e superação vem embalado de autocuidado

skynesher/Getty Images
Imagem: skynesher/Getty Images

Colunista de Universa

18/10/2022 04h00

Um tempo atrás, falando com um amigo ao telefone, esse me informa que desligaria porque precisava "pagar uma física".

Ri e lembrei que algumas pessoas mais velhas da minha família costumavam falar "fazer física" ao se referir à prática de atividade física. Como diz meu filho mais novo: "Deu mó nostalgia".

Provavelmente, a associação vem justamente da prática da disciplina de educação física. Para muita gente, especialmente as de classes sociais —eu ia dizer "menos abastadas", mas entendo que "desemparadas" cai melhor— a disciplina é uma das portas de entrada para a relação com o próprio corpo. De entendimento, trabalho, prazer e da tal consciência corporal.

Prometo não derivar. Deixa eu voltar pro que eu tava a fim de falar com vocês hoje. Na era do autocuidado (ou seria melhor dizer era do discurso do autocuidado?), é interessante observar que essa relação de suposto cuidado com corpo aponta para outros lugares. Não necessariamente do cuidado em si. Aqui, tomo a liberdade de trazer a definição de cuidado que encontramos no Dicionário Aurélio: "1. Desvelo. 2. Responsabilidade. 3. Atenção, cautela". Hmm.

No entanto, a transformação e a superação parecem ser os grandes estandartes quando o assunto é corpo. O que vem de fábrica nunca é bom o suficiente e precisamos incessantemente buscar opções —maquiagem (transformadora), cirurgias plásticas, harmonizações faciais e corporais, toda sorte de medicamentos e substâncias que possam alterar processos metabólicos que nos ajudem a "chegar lá". Ainda que tenhamos que, literalmente, pagar tais intervenções com um rim.

As pessoas já não se exercitam, elas treinam. Não se exercitam pra dar um axé nos pulmões e coração, para liberar energia em excesso. Não. Elas treinam. Hoje em dia, o lance é "pagar um treino". E mais que pagar o treino, você precisa se superar. Esse lance de superação ligada ao corpo costumava ficar associado à vida de atletas. Já não mais, todos precisamos nos superar incessantemente.

Até o modo como os instrutores (treinadores?) falam com a gente é como se fossemos golfinhos. Quando você segura um minuto na prancha, antes de desfalecer, ainda pode escutar um "Muito bem, Flipper".

Aquela caminhadinha ao ar livre, curtindo a temporada de pitangas e amoras, tá total fora de cogitação. Vai pra academia de crossfit, levanta uns pneus e corre duas vezes no quarteirão ao redor da academia. Ali mesmo, naquela avenida cheia de carros e envolta em gás carbônico. Prazer? Se liga! No pain, no gain! Até a coitada da ioga, originalmente voltada ao respeito e entendimento dos limites e na elaboração do caminho, mais que o foco no fim, tem sido usada de modo deturpado de seu objetivo primeiro.

Bem, na real, cada um cuida de si como bem entender. Se fulano curte sofrimento, gritos, superação, música alucinante e iluminação de boate no momento de autocuidado, que faça bom proveito. Se beltrana ama marcar todo corpo com caneta piloto e depois cortar e modelar a seu gosto, que seja feliz para sempre na saga do (agora chamado) autocuidado.