Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Para deputados sob investigação, falta de decoro é Isa Penna dançar funk
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Um já foi apontado por violência doméstica e intimidação de colega deputada; outro votou pela punição de Isa Penna por ter recitado um poema em homenagem a trabalhadoras sexuais; o terceiro é pastor evangélico, quer impedir que se fale de gênero nas escolas e teve suas contas das eleições de 2018 reprovadas; já o quarto responde a três ações na Justiça de São Paulo por improbidade administrativa; e o último já foi investigado por nada mais nada menos que tortura!
Esse é um breve resumo, feito aleatoriamente, de parte da trajetória de Adalberto Freitas (PSL), Alex de Madureira (PSD), Delegado Olim (PP), Estevam Galvão (DEM) e Wellington Moura (Republicanos), os cinco deputados que votaram para diminuir a pena para a importunação sexual cometida pelo colega Fernando Cury (Cidadania) contra Isa Penna (PSOL) no plenário da Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo), na frente de todo o país — uma vez que todas as atividades foram gravadas.
Em votação sobre o caso de assédio no último dia 5, o Conselho de Ética da Alesp decidiu abrandar a suspensão de Cury, de seis meses para 119 dias. Entretanto, para eles e demais deputados, o verdadeiro problema não é ser investigado por tortura, ter contas reprovadas ou responder a ações judiciais, mas sim dançar funk. A pergunta que provavelmente se fazem em seu íntimo é: como essa Isa Penna pode exigir respeito se não se dá ao respeito?
Isso, foi, inclusive, o que disse à "Folha de S. Paulo", o deputado Freitas. "Ela não respeita as pessoas. Se a pessoa quer respeito, ela tem que respeitar", afirmou, se referindo ao fato de a deputada ter recitado o poema "Sou Puta, Sou Mulher" no plenário.
Já outro alega que conhece a família do acusado de importunação sexual, gente de bem. "A conduta da Isa é diferente daquilo que eu defendo como valores. Mas é a vida dela, ela faz o que ela quiser. Ela apagou das redes sociais os vídeos dançando e sensualizando. Quis passar imagem de boa moça. O contraponto disso é o deputado Cury, conheço ele, a esposa, os filhos", disse Alex Madureira.
Poderia continuar discorrendo sobre todo o senso comum que embasa as falas e decisões de alguns deputados, mas acredito que deu para entender que se você é uma mulher livre, que dança o que quer, pensa o que quer, defende suas ideias publicamente e não se acanha diante da expectativa de que você seja uma boa moça, seus direitos à reparação não serão garantidos. E, na lógica deles, a culpa é sua.
A autora que vos fala sabe bem o que é isso, porque como uma mulher que não se cala diante de injustiças, já ouvi que sou agressiva na frente de mais de 150 pessoas, apenas porque apontei que um homem cumpriu sua obrigação quando votou pró- mulheres enquanto outros homens tentavam conferir ao primeiro o mérito de uma luta feminina e feminista.
A inversão de valores é clara no raciocínio desses homens, uma vez que não têm qualquer vergonha em desproteger uma mulher que dança funk, a responsabilizando, portanto, pela violência que sofreu, enquanto, ao mesmo tempo, carregam consigo um histórico de violações. Ao que me consta, dançar funk não é crime, ao passo que tortura, mal uso de verbas públicas e importunação sexual são.
No mundo da masculinidade, roubar, torturar, intimidar e tocar sem consentimento o corpo de uma mulher são condutas corriqueiras, tratadas como quase naturais, como coisas que acontecem por força do acaso ou porque as vítimas, essas salientes, provocam. E apenas a mulher à imagem e semelhança da Virgem Maria é que a merece proteção; todas as outras, que se virem com seus traumas e que aprendam a sorrir para seus agressores com os quais, como Isa Penna, são obrigadas a continuarem convivendo.
Acontece que simplesmente não existe a mulher Virgem Maria. Todas, absolutamente todas, as mulheres já tomaram um porre, já usaram uma roupa curta, já passaram batom vermelho, já se relacionaram com pessoas das quais não se orgulham, ou já tiveram casos extraconjugais, já tiraram e enviaram uma nude, já transaram no primeiro encontro com um cara que conheceram em um aplicativo. Isso acontece por um simples motivo: mulheres são pessoas e como pessoas vão errar e vão acertar.
E se a mulher Virgem Maria não existe, o que acontece, na prática, é que todas as mulheres estão sujeitas a serem desamparadas e desprotegidas quando foram vítimas de uma violação. Se uma mulher não tem seus direitos garantidos, nenhuma mulher tem. Porque, se as coisas permanecerem assim, sempre usarão contra nós fatos de nosso dia a dia que em nada têm a ver com a violação sofrida, mas apenas com o exercício de nossa humanidade.
Apenas ao homem branco é garantido o privilégio de cometer uma série de ilegalidades, imoralidades e atos antiéticos sempre culpando outra pessoa. No caso, a culpa é da vítima. Às vezes, a culpa é do STF, dos governadores, da ciência, mas, nunca, jamais, do agente da violência. Ele acredita que é uma vítima de um complô. Não vivemos em um filme de Hollywood, caros homens; nenhuma mulher tem interesse em fazer um complô contra um homem simplesmente porque temos coisas muito mais interessantes para fazer.
Não há nada que uma mulher possa ter feito antes, durante ou depois de uma violência sexual que explique o crime do qual foi vítima. A única coisa que explica o crime é a escolha do agressor em cometê-lo. A única coisa que explica a conduta de Fernando Cury foi sua escolha de fazê-la, escolha essa bem tranquila porque ele sabia que, no fundo, não ia pegar nada.
É tão grave a ideia de que a culpa é da vítima porque ela não se dá ao respeito, que já tramita na Câmara dos Deputados um Projeto de Lei que pretende vedar que, nas audiências de instrução de processos criminais, em especial nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, haja manifestações sobre fatos e provas que não constem nos autos.
Com isso, qualquer agressor sexual, seus defensores ou qualquer pessoa estarão proibidos de dizer que que foi a dança dela publicada em suas redes sociais que o fez agredi-la. Caminhamos, a passos lentos, para finalmente consolidar uma ideia bastante óbvia: apenas o agressor é responsável pela agressão.
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