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Isabela Del Monde

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Estatuto da gestante: nome populista para retirar o direito ao aborto legal

O senador Eduardo Girão é autor do projeto de lei - Edilson Rodrigues/Agência Senado
O senador Eduardo Girão é autor do projeto de lei Imagem: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Colunista de Universa

28/03/2021 04h00

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De tempos em tempos, nós, brasileiras, somos assombradas por projetos de lei que querem reduzir o nosso já restrito direito ao aborto. O PL (projeto de lei) do momento é o 5435, de 2020, de autoria do senador Eduardo Girão (Podemos - CE), intitulado de Estatuto da Gestante.

Não se engane pelo título. No primeiro momento, ele transmite uma ideia de proteção e cuidado com as gestantes, porém basta ler os 12 artigos do PL que fica explícito que esse título é meramente populista. Afinal, quem é contra a garantia de direitos de gestantes?

Acontece que esse PL não traz absolutamente nenhuma inovação quanto aos direitos das pessoas gestantes. São previstos direitos que já encontram salvaguarda na legislação brasileira, tais como o direito ao pré-natal no SUS (Sistema Único de Saúde), a obrigação do pai quanto à criação da criança, obrigação do pai em pagar alimentos e assim por diante.

O projeto do Estatuto da Gestante é tecnicamente muito equivocado em vários aspectos. Utiliza-se uma nomenclatura coloquial e esvaziada de sentido ao se referir ao feto como "criança por nascer".

Ao usar essa expressão, o senador pretende apenas enraizar ainda mais a falsa ideia de que o aborto equivale ao assassinato de crianças. Uma escolha cruel de palavras, especialmente cruel contra a memória das brasileiras que já morreram por conta de um aborto ilegal.

Outro grande equívoco de técnica legislativa do PL é o conflito com outras normas já existentes no Brasil. Atualmente, o Código Penal determina que não é crime o aborto realizado por médica ou médico quando não há outro meio de salvar a vida da gestante ou em caso de gravidez causada por estupro. Direitos já garantidos.

Porém, no artigo 8º do PL em questão, o senador quer que seja "vedado a particulares causarem danos a criança por nascer em razão de ato ou decisão de qualquer de seus genitores". Ou seja, quer proibir os abortos que atualmente são lícitos.

Ocorre que em nenhum momento o senador cearense Eduardo Girão declarou, no texto do PL, que este revoga dispositivos do Código Penal, sendo que a lei brasileira é clara ao determinar que lei nova revoga lei antiga se assim o declarar.

Se o PL passar, qual lei vai valer? Essa que proíbe qualquer tipo de aborto ou o o que diz o Código Penal e as decisões do STF (Supremo Tribunal Federal) que permitem alguns abortos?

A falha técnica causa espanto em estudantes do primeiro ano de faculdade e deveriam causar constrangimento ao senador, um homem que se apresenta como empresário de hotelaria, transporte de valores e segurança privada, e que é responsável por criar leis.

Chega a ser desconfortável ter que nos referir a esse PL como estatuto. Um estatuto é uma lei complexa, construída com participação popular e com contribuições de especialistas. O Estatuto da Criança e do Adolescente tem 267 artigos, o da pessoa com deficiência tem 127, o do idoso 118 e até mesmo o estatuto do torcedor tem 45 artigos! Já o da gestante tem 12! Vocês acreditam que seja possível bem regulamentar os direitos da gestante em míseros 12 artigos? Não é.

A grande verdade é que esse PL não tem como objetivo proteger gestantes. Seu único objetivo é impedir a realização de qualquer aborto no Brasil.

É reduzir a existência das mulheres a máquinas reprodutivas que não têm sonhos, dignidade e vontade própria. Inclusive se a nossa vontade for violada e nos engravidarem em um estupro, não poderemos abortar.

Girão propõe uma lei que desumaniza metade da população brasileira e deveria se envergonhar e pedir desculpas por ter imposto a nós um medo desse tamanho, o medo de ser obrigada a manter uma gravidez provocada pelo estuprador.

"Bolsa estupro"

A forma como o excelentíssimo senador da República encontrou para contornar a sua sugestão de torturar mulheres obrigando-as a manter uma gravidez provocada por um estupro, foi com a previsão do pagamento, pelo Estado, de um salário-mínimo para custear a vida, a saúde, o desenvolvimento e a educação da criança. A internet não perdeu tempo e já apelidou a iniciativa: "bolsa estupro".

O senador, além de não se preocupar em dizer a periodicidade desse auxílio, sua fonte orçamentária, muito menos qual pasta do Executivo cuidaria dessa nova política pública, reduz a existência e criação de um ser humano a recursos financeiros.

Um olhar obtuso e insensível. Obrigar suas cidadãs a continuarem com uma gestação indesejada é desumano, excelentíssimo senador, ainda mais depois de assistirmos dia a dia à batalha que é conseguir que o Estado, no governo Bolsonaro, aprove auxílios financeiros para a população.

Se o objetivo é proteger a vida da criança, é dever do Estado legalizar o aborto, porque a mulher que morre por causa da interrupção da gravidez muitas e muitas vezes já é mãe de uma criança — e esta ficará órfã porque sua mãe, provavelmente uma mulher pobre e negra, teve negado o direito de acesso à saúde, como já identificado na pesquisa "Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna".

A legalização do direito ao aborto é fundamental para garantir a vida de crianças e mulheres brasileiras.

Estamos cansadas, estamos exaustas de homens cis se sentindo completamente à vontade, sem qualquer crise ética, de dizer o que podemos fazer ou não com nossos corpos. Eles dão chiliques porque não querem usar máscaras em meio à maior pandemia do século, mas não veem qualquer contradição em nos obrigar a gestar e a parir. Estamos cansadas de estarmos em um país que insiste sempre em ser o último colocado em questões de avanços de direito, estamos cansadas de ter medo. Um novo medo: gestação forçada.

Conclamo ao Congresso Nacional que se posicione contra essa proposta. Ela é equivocada em todos os aspectos, inclusive no que tange ao respeito à vontade do povo. Em consulta pública no site do Senado para saber a opinião da população sobre esse projeto de lei, até o momento
279.504 pessoas disseram não apoiar a iniciativa, contra 36.353 a favor dela.

Congressistas são funcionários do povo e é ao povo que devem satisfação de suas atividades parlamentares. Estamos, todas e todos, gritando um alto e sono NÃO.