Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Por que o Brasil ainda inventa tanta mentira sobre aborto?
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Ao longo da história brasileira, existiram e existem assuntos sobre os quais negacionismo ou a mentiram imperam. Não falávamos de violência doméstica porque "em briga de marido e mulher não se mete a colher"; as pessoas LGTBQIA+ eram, e muitas ainda são, obrigadas a viver sua autenticidade escondidas; as pessoas com deficiência são restringidas quase que exclusivamente ao espaço doméstico. E há quem ainda defenda o que eu considero nossa maior mentira, a democracia racial.
São, e foram, pessoas corajosas e firmes quanto ao propósito de vida que conseguiriam jogar luz a esses mitos, provocando avanços históricos positivos. Isso é nítido quando falamos de violência doméstica e da popularidade da Lei Maria da Penha, hoje conhecida por quase 90% da população, de acordo com Índice de Confiança na Justiça, o ICJBrasil, da FGV (Fundação Getúlio Vargas).
Conseguimos, nesse assunto, mudar radicalmente a percepção pública sobre os direitos das mulheres no contexto de relacionamentos e famílias. Também foi possível fixar a ideia de que é errado cometer agressões contra mulheres e de que é injusto que homens nos matem em defesa de sua honra.
Entretanto, ainda há um assunto no Brasil sobre o qual persistimos em manter o manto da mentira, da desinformação e do negacionismo. Estou falando da interrupção voluntária da gestação.
Por causa da decisão do Tribunal Constitucional da Colômbia em descriminalizar o aborto no país, na segunda-feira (21), o tema ficou em alta no Brasil. Porém, não para uma conversa franca e aberta, mas, sim, para, mais uma vez, o assunto ser reduzido a um ringue de opiniões sem fundamentos.
Ringue esse, cabe salientar, especialmente promovido por homens, alguns deles da extrema-direita nacional e ocupantes de cargos eletivos.
Defendo, com toda minha convicção, que precisamos falar sobre a interrupção voluntária da gravidez. Mas esse assunto, como qualquer outro tema que se relacione à saúde coletiva e à organização social, deve ser discutido com base na ciência. Assim como a opinião pessoal sobre a vacina de covid-19 não deve ter qualquer relevância para o seu desenvolvimento e aplicação em massa por meio de políticas públicas, a mesma lógica vale para o serviço de interrupção de gestação.
As ciências já nos trazem dados para embasar a conversa e a tomada de decisão. Segundo pesquisa desenvolvida pelo Anis Instituto de Bioética e apresentada por Debora Diniz em audiência pública sobre aborto realizada em agosto de 2018 no STF (Superior Tribunal Federal), uma a cada cinco mulheres brasileiras até os 40 anos já precisou recorrer à interrupção da gestação. Dessas, 88% são religiosas, especialmente católicas e evangélicas, e 67% já tinha pelo menos um filho.
Esses dados nos revelam, portanto, que o estereótipo da mulher leviana, que utilizaria esse procedimento praticamente como método contraceptivo, é um bicho papão inventado para impedir que a conversa avance.
Nenhuma mulher deseja realizar uma interrupção, nenhuma mulher trata esse procedimento como um passeio. Trata-se, antes de tudo, de uma escolha e uma decisão que costumam causar angústia, medo e culpa. Que nos confronta com nossos princípios de fé.
Mas, normalmente, a realidade concreta se sobrepõe a esses sentimentos. Quando falamos na descriminalização, estamos pensando nas mulheres pobres, abandonadas pelo Estado e pela sociedade em geral. É justo, enquanto sociedade, somarmos o risco da morte e da cadeia àquela já confusa cesta de sentimentos?
No que diz respeito ao risco de morte, a pesquisa do Anis revela que "cerca de metade das mulheres que abortam [no Brasil] todos os anos precisam ser internadas. São 250 mil mulheres a cada ano nos leitos do SUS [Sistema Único de Saúde] por abortos inseguros". E aqui fica explícita uma profunda incoerência das pessoas que se posicionam contra a legalização: supostamente, defendem a vida, mas viram as costas com tranquilidade para esses dados alarmantes que revelam que a saúde e a vida das mulheres estão comprometidas pelo negacionismo e pela proibição.
Já no que se refere ao risco de cadeia, a mesma pesquisa nos conta que "se todas as mulheres fossem punidas pela lei atual, teríamos hoje 3 milhões de famílias que ficariam sem mães, ou cujas mães teriam passado pela prisão em algum momento da vida." Para fins de entendimento da grandeza desse número, a população de pessoas presas no Brasil hoje é em torno de 1 milhão.
Para mim, o mais injusto de todo esse cenário é que os riscos de adoecer ou morrer e de ser presa caem apenas nas costas das mulheres pobres, uma vez que as que podem pagar já contam com o serviço seguro de interrupção.
Estamos assistindo a muitos homens que já são eleitos ou que querem se candidatar nas eleições de 2022 agitando suas bases com pronunciamentos sensacionalistas, prometendo que, sob seus mandatos, esse assunto não avança. Esses homens são inimigos das mulheres brasileiras e merecem nossas respostas nas ruas e nas urnas, porque nunca os vemos se indignando, por exemplo, com o fato de que mais de 5.5 milhões de crianças não têm o nome do pai em suas certidões de nascimento.
São homens que insistem em tratar as mulheres como objetos reprodutivos, como se elas fossem capazes de gerar crianças sozinhas, e não têm qualquer pudor ou remorso em deixá-las, junto com suas crianças, abandonadas após o parto.
Todas as pessoas são responsáveis pela segurança de todas as demais e, por isso, te convido a abrir seu coração e participar dessa conversa com todo o amor que acredito que você tenha pelo próximo.
Já passou da hora de o Brasil agir como gente grande quando o assunto é interrupção voluntária da gravidez. Ou desejamos, assim como fomos com a escravização, ser o último país do Ocidente a eliminar essa indigna barreira que destrói a vida das nossas irmãs mais vulneráveis? O atual presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), por exemplo, está colocando urgência na votação sobre jogos de azar, alegando que eles já acontecem, então é melhor regulamentar. Oras, o aborto também já acontece, por que esse argumento não vale para quando os direitos são para as mulheres?
Esse texto foi escrito após muita reflexão e trocas, especialmente com as amigas e advogadas Cecilia Mello e Tainã Góis, para as quais deixo meus agradecimentos.
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