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Isabela Del Monde

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que sou contra lei que autoriza delegados a darem medidas protetivas

Violência doméstica é tema de ação discutida pelo STF, que prevê que medidas protetivas deixem de ser concedidas por delegados - Getty Images
Violência doméstica é tema de ação discutida pelo STF, que prevê que medidas protetivas deixem de ser concedidas por delegados Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

24/03/2022 04h00

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Sei que pode parecer muito estranho, em um primeiro momento, que uma advogada que defenda uma vida sem violência para mulheres seja contra a lei que autoriza delegados e delegadas de cidades que não são comarcas, ou seja, que não têm fórum judicial próprio, a conceder medidas protetivas para vítimas de violência doméstica. Você pode se perguntar: essa advogada não quer que essas mulheres sejam protegidas?

Quero, e muito. Mas entendo que essa permissão para concessão de medida protetiva por delegacias é uma medida que, embora pareça garantir mais direito às mulheres, na verdade, enfraquece a proteção. Explico a seguir, vem comigo.

Logo que essa alteração da Lei Maria da Penha estava em fase de aprovação no Congresso Nacional, eu e as juristas Amanda Vitorino, Gabriela Biazi e Marina Ruzzi emitimos uma nota técnica pela Rede Feminista de Juristas com os pontos mais problemáticos dessa medida. Sigo com a mesma opinião e trago a seguir os pontos que abordamos naquela nota.

O primeiro deles dialoga bastante com a argumentação da Associação Brasileira de Magistrados, que propôs uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) ao STF (Supremo Tribunal Federal) para revogar essa lei. A ação foi negada pelos ministros, por unanimidade, na quarta-feira (23). Mas mantenho meu entendimento, contrariando o STF, de que a permissão para que delegados e delegadas concedam medida protetiva seja inconstitucional porque transfere a esses servidores poderes que, pela Constituição, são apenas de juízes e juízas, ofendendo assim o princípio da separação de poderes.

É o Judiciário que, por lei, tem o direito e o dever de decidir sobre os conflitos sociais e o faz guiado por uma série de regras, como o direito de acesso à justiça, o direito à ampla defesa e o direito a um juiz ou juíza imparcial, e nada disso é garantido na atuação unilateral de delegados e delegadas e policiais.

Além disso, defendemos em nossa nota que essa mudança na lei "desconsidera todo o histórico de construção e a estrutura da política estatal de enfrentamento à violência doméstica, além de falhar em elaborar um diagnóstico correto dos problemas que marcam essa política."

A Lei Maria da Penha determina que devem ser criados juizados de violência doméstica e familiar justamente para garantir que todas as pessoas, sejam as vítimas ou os acusados, contem com a proteção do Judiciário. Nesse sentido, a permissão para que delegacias concedam medida protetiva enfraquece a obrigação do Estado em criar tais juizados, esses sim capazes de garantir o cumprimento de todo o devido processo legal.

Mas talvez o aspecto mais preocupante seja a ausência de capacitação de servidores das polícias civis estaduais sobre as questões de gênero e violência doméstica. Infelizmente, ainda é comum que, mesmo nas delegacias especializadas, as mulheres sejam mal atendidas, ofendidas, responsabilizadas pelas violências que sofrem e desencorajadas a realizar suas denúncias.

E quando expandimos nosso olhar para as delegacias do interior do Brasil, onde é mais utilizada a concessão de medidas protetivas por servidores da polícia e não do Judiciário, fica evidente que não há nem destinação orçamentária nem investimento para a capacitação no que se refere ao atendimento de vítimas. Considero, como fizemos em nossa nota, que essa medida, além disso, precariza o trabalho policial na medida em que prevê acúmulo de função sem aumento de remuneração.

Há elevadas chances, portanto, de uma vítima não conseguir uma medida protetiva simplesmente porque o delegado julga que ela está exagerando ou até mesmo por conhecer o acusado e decidir não querer "prejudicá-lo". Ou porque, ainda, há uma imensa sobrecarga de trabalho que impeça um atendimento humanizado às vítimas.

Como indicamos na análise da Rede Feminista de Juristas, "de nada vale redistribuir essa responsabilidade a outros atores se a nenhum deles for dado o suporte necessário para exercê-las de modo consequente e eficaz." Por tudo isso, eu sou favorável à revogação, pelo STF, da lei que permite delegados e outras autoridades policiais a concederem medidas protetivas às vítimas.