Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Por que imprensa só questiona políticos sobre aborto de 4 em 4 anos?
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No Brasil, vivemos uma curiosa contradição: a interrupção voluntária da gravidez é um imenso tabu do qual não falamos, em debate público, mas que nos anos eleitorais ganha um tremendo destaque na grande imprensa. Cabe, porém, a lembrança de que entre mulheres e alguns veículos esse assunto é tratado continuamente, como é o caso de Universa.
A pergunta sobre se uma candidatura é contra ou a favor o aborto é sempre feita, mas como não temos um alicerce na conversa pública sobre o assunto, ela costuma ser usada como uma armadilha para polêmicas.
Tenho todo respeito pela imprensa brasileira, mas é preciso amadurecer essa abordagem porque o direito ao aborto seguro não pode ser tratado como uma pauta de espetáculo e likes. As mulheres brasileiras estão morrendo por causa da ausência desse direito. O debate precisa ter esse foco.
É impensável, por exemplo, que sejam feitas perguntas sobre a opinião de uma candidatura a respeito da existência do crime de feminicídio. Se o Brasil é o quinto país do mundo que mais mata mulheres, é ponto pacífico que precisamos de uma norma que responda a isso. Logo, se o Brasil é um país em que há 1 milhão de abortos por ano, é evidente a urgência de uma lei que o regulamente.
A imprensa tem papel central na qualificação e no refinamento da conversa sobre aborto, assim como teve, e ainda tem, papel central no enfrentamento à violência doméstica e à importunação sexual que as mulheres sofrem nas ruas. Então, tomo a liberdade de oferecer algumas recomendações de abordagem.
O primeiro grande problema está em concentrar a conversa sobre aborto apenas nos anos de eleições presidenciais. As mulheres não abortam de quatro em quatro anos, mas todos os dias.
A cada nove minutos, uma mulher morre por complicações de aborto no mundo, como nos conta Renata Corrêa em seu "Monumento Para a Mulher Desconhecida", (ed. Rocco). Isso se dá, principalmente, porque a interrupção de gravidez é considerada crime, levando mulheres a recorrerem a procedimentos ilegais e inseguros. Esse é um risco diário para as brasileiras e, por isso, deve ser um assunto diário em nossa imprensa.
Além de incluir o assunto na pauta do dia, é necessário evitar a formações de ringues, porque a discussão não deve ser focada em ser contra ou a favor à prática do aborto. Isso é uma decisão de foro íntimo e personalíssima de toda mulher e não cabem opiniões alheias. O debate é a respeito, então, da legalização da interrupção voluntária da gravidez.
Assim como há o debate da criminalização da LGBTfobia como passo essencial para a redução das mortes de pessoas LGBTQIA+, é preciso divulgar o debate da legalização do aborto como fundamental ao enfrentamento da morte materna.
As mulheres que abortam, em sua maioria, já são mães e, se elas abortam de forma clandestina, os seus filhos que já existem correm altos riscos de ficarem órfãos. A pesquisa Aborto: Por Que Precisamos Descriminalizar?, do Anis Instituto do Bioética, nos conta que "de acordo com o Ministério da Saúde, houve 1.613.903 hospitalizações por aborto entre 2008 e 2017. Casos de 'near miss' (quase morte) corresponderam a 2,5% dessas hospitalizações. Ou seja: 40.348 mulheres quase morreram por aborto (internadas) dentro dos hospitais brasileiros na última década."
Nos diálogos e sabatinas com as candidaturas, seria reconfortante vermos a imprensa formular suas perguntas a respeito da posição sobre a legalização do aborto a partir de dados produzidos pela ciência.
É necessário remover o senso comum e as opiniões e demandar respostas de como, por exemplo, a candidatura pretende evitar a internação de 250 mil mulheres por ano devido ao abortamento ilegal.
Até o momento, infelizmente, só um presidenciável, Lula (PT), falou sobre o aborto ser questão de saúde pública e defendeu a expansão de direitos e o fim da vergonha, alegando que a ilegalidade prejudica apenas mulheres pobres. A deputada federal e pré-candidata à presidência Simone Tebet (MDB-MS) disse, em sabatina UOL/Folha que é contra o aborto, mas que o assunto não pode ser um tabu. Já Ciro Gomes (PDT), também para UOL/Folha, deslizou, escorregou e disse que temos que focar no que importa, que é a saúde, a economia —para esse, aparentemente, a vida das mulheres é assunto de menor relevância.
É evidente que todas as candidaturas têm medo de falar sobre o assunto. Entretanto, pode ser um medo bobo, já que pesquisa do Sala de Democracia Digital da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da FVG (Fundação Getúlio Vargas) revelou que a fala de Lula sobre o assunto não mudou o quadro de apoio a ele nas redes sociais. O bicho papão de que falar de aborto causa automaticamente perda de votos pode ser só isso, um mito.
É preciso, enquanto comunidade, criarmos o terreno para que, nos anos eleitorais, não falte coragem para que esse assunto seja tratado proativamente pelas candidaturas, sem vergonhas e constrangimentos. Acredito que a imprensa tem papel central nessa criação e que as mulheres brasileiras merecem essa aliança e esse compromisso.
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