Bolsonaro e Doria brigam por vacina e a gente só pode confiar na ciência
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Minha tia me contou uma coisa no início da pandemia que não sai da minha cabeça. Ela lembra de minha avó, no início dos anos 50, incluir em suas orações uma frase que voltou a fazer sentido: "que eles achem logo a vacina". Tivemos algumas conversas sobre isso há uns meses. De que vacina será que ela falava? Talvez fosse o acúmulo das histórias de doenças que rodearam nossa família na primeira metade do século anterior.
Minha avó nasceu alguns anos depois da gripe espanhola e deve ter escutado histórias de mortes que apavoraram sua infância. Para piorar, seu pai morreu de tifo quando ela era um bebê. E sua mãe e quatro filhos pequenos enfrentaram a abordagem nada amigável dos soldados na revolução de 32. Já adulta, teve duas filhas que passaram muito mal com sarampo. O fantasma de todas essas doenças deve ter permanecido ali.
Não sei se tem relação com a reza de dona Maria Júlia, mas a vacina de sarampo começou a ser aplicada no Brasil na década de 60 e mudou o curso da infância das crianças desde então. Eu não tive sarampo. Meu filho também já foi vacinado e a doença não nos preocupa agora, 60 anos depois.
O que não esperávamos é que no auge da vida moderna que vivemos, enfrentaríamos uma nova pandemia, como aquela da qual vó Júlia escutou apenas histórias há um século. E aqui estamos, há sete meses (já deu oito?), esperando a vacina. Quer dizer, 89% dos brasileiros, segundo pesquisa do DataFolha de agosto desse ano. Os outros 11% são contra tomar injeções desse tipo, mesmo enfrentando a maior pandemia de nossa era. Minha avó iria ficar pasma.
Se a ciência é por nós, quem está contra nós?
Não entendo muito de ciência. Por isso, como meu assunto de maior interesse no ano é relacionado a um tema que não domino, eu leio sobre o assunto. Leio quem manja, quem estuda, quem sabe do que está falando. Fiquei animada então de ler que realmente eram positivos os estudos relacionados à Coronavac, uma vacina criada na China e em testes no Brasil em parceria com o Instituto Butantan, produtor das vacinas que fazemos fila para tomar há anos. Positivos não quer dizer definitivos. É apenas o mais perto que podemos estar de um retorno à vida que tivemos em março. A esperança.
O governador do meu estado estava prometendo a vacinação para 15/12 e isso me deixou desconfiada. O pessoal que manja do assunto disse que não era bem assim — as notícias eram boas, mas os prazos improváveis. Ele então voltou atrás. O fato é: tem uma esperança aí, não se sabe muito bem quando, de eu experimentar os chopes deliciosos que minha tia pede no bar diretamente no copo dela. Não será esse ano, mas um dia. Boa.
O Ministério da Saúde também achou uma boa e anunciou que assim que fosse tudo aprovado pela Anvisa, comprariam milhões de doses. Parecia realidade. Até o presidente declarar que não era bem assim, insistindo em uma bandeira que se propaga de que a vacina não é obrigatória. Questionando a comprovação científica que todos nós estamos exigindo também, claro (e que bem ele não achou importante para o tratamento com Cloroquina). O presidente também passou a pandemia dizendo que não era importante fazer isolamento enquanto a ciência e o mundo inteiro falavam que era.
Não se sabe a troco de quê (agradar os EUA, criticar a China, combater Doria, prejudicar o povo ou todas as anteriores?). Doria retrucou, os dois estão brigando. E a gente? A gente não tem em quem confiar. Estamos à deriva há muito tempo. Eles não se importam com a gente, como cantava Michael Jackson.
A briga de Bolsonaro e Doria deixa os brasileiros perplexos. O universo do coronavírus já tem elementos o suficiente para nos deixar cheios de dúvida. O que se espera dos líderes é união em prol do povo que eles lideram — a gente. O que se vê são eles pensando neles. Abobada, eu vejo os políticos tratando como política o que, se comprovado eficaz pela ciência, pode mudar nosso futuro próximo. Enquanto podíamos aqui estar falando de efeitos colaterais, de transparência nos testes, de alcance, de plano de vacinação... estamos vendo os meninos brigarem.
Enquanto isso, me pego repetindo padrões ancestrais quando, em minhas orações com meu filho, pedimos que descubram logo a vacina. "Para o Corona ir embora", ele diz.
Se estivesse viva, dona Maria Júlia ia dizer amém.
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