Por que é grave Damares confeitar bolo ao falar de violência contra mulher
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Trabalhei por um ano e meio na redação de Universa como editora. Todos os dias, ouvimos, falamos, apuramos e contamos histórias de mulheres que foram violentadas por homens. Diz-se que o jornalista perde a sensibilidade por lidar com tragédias diárias. Na redação de Universa, falo por mim e pelas jornalistas que estão ou que passaram por lá, nunca deixamos de nos importar com as vítimas de feminicídio. E queremos, dia após dia, preservar a vida de outras tantas mulheres que vivem a agressão verbal, psicológica e física.
O início desse texto é porque comecei esta quarta-feira positivamente impactada com a Cartilha Universa da Violência Contra a Mulher, um projeto muito bem editado por Marina Bessa, com muitos depoimentos de mulheres que estudam esse assunto sério e espinhoso. Entre elas, as repórteres Luiza Souto e Mariana Gonzalez, com quem tive a felicidade de trabalhar e que me ensinaram muitas vezes na redação o jeito respeitoso de abordar uma vítima ou familiar de vítima fatal. Respeitosamente, com muito cuidado. O assunto é tão sério quanto triste. Não poucas vezes, nós saímos da redação amuadas, pensando em mulheres que poderiam ser nós mesmas.
No texto manifesto de abertura, a editora-chefe Dolores Orosco cita o nome daquelas que ficaram famosas porque seus parceiros decidiram tirar suas vidas. "Tatiane Spitzner. Sandra Gomide. Yasmin Costa dos Santos. Eliza Samudio. Eloá Cristina Pimentel. Assim como eu, e talvez como você também, essas mulheres faziam planos profissionais, trocavam confidências com a melhor amiga, tinham uma cor de esmalte preferida, familiares que amavam. Tinham sonhos", ela escreve. A cobertura de várias dessas mortes no currículo aperta o peito com o questionamento: o que poderíamos fazer para evitar? Essa luta é constante.
O jornalismo pode contribuir nas denúncias, pode ajudar a encontrar culpados. Mas se espera dos nossos governantes campanhas, ações e justiça, de modo a diminuir um pouco o sofrimento dessas mulheres. Por isso, existe no Brasil um Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, chefiado pela ministra Damares Alves.
O que ela preparou para o Dia Internacional da Eliminação da Violência contra a Mulher? Uma cartilha, acolhimento, tentativa de impedir o corte de orçamento que a área vai ter para o próximo ano? Não, Damares confeitou um bolo. Enquanto brincava, fazia piadas e preparava o prato, ela dizia que as mulheres poderiam denunciar violência usando o número 180. Ou via Whatsapp. E depois continuava elogiando o chantilly.
Mas fazer bolo é tão inofensivo... por que as mulheres ficaram tão indignadas com isso?
A reportagem de Camila Brandalise descreve a ação da ministra. "'Eu nunca fiz isso na vida', disse Damares antes de passar o chantilly nas camadas de massa recheadas à sua frente. 'Será que é por isso que meu marido foi embora de casa?'", conta a repórter.
Num cenário rosa, que reforça o estereótipo que ela tenta emplacar desde o primeiro dia de governo, ela diz às mulheres que há meios de aprender trabalhos e conquistar a independência financeira. Confeitar bolos, fazer maquiagem e costurar estão entre as sugestões da líder, perpetuando ainda profissões ligadas ao que sempre se entendeu por universo feminino.
Mulher pode fazer tudo isso, claro. Mas pode muito mais. E essas habilidades podem nem ser bem executadas por uma mulher — como Damares provou no vídeo. Como podem ser assunto de homem também — já viram o Cake Boss ou o Duff, no FoodNetwork? É papel também dos governantes ajudar a propagar o entendimento de que mulheres podem ter a ocupação que bem entendam.
Brandalise mandou algumas perguntas para o Ministério sobre a live, questionando a decisão de fazer uma aparição bem humorada sobre assunto grave. Ficou sem resposta. "A liderança não deveria ter uma olhar mais crítico a essa crença que esses são trabalhos femininos? Até entendo que misturar conteúdo divertido com assuntos sérios faça sucesso nas redes. Mas era necessário fazer isso com um assunto tão grave quanto o da violência contra a mulher? Como lidar com o fato de o orçamento ligado à causa cair 19% no próximo ano?", ela me disse numa conversa no Whatsapp. São pontos a se pensar.
Acrescento uma dúvida: na live, Damares menciona, entre várias brincadeiras com o presidente, que Michele, a primeira dama, deve cozinhar bem, pois mora com muitos homens. Por que na casa de Bolsonaro seria Michele a cozinhar se tem mais quatro homens saudáveis e aptos para dividir essa função com ela?
As perguntas estão sempre na boca das jornalistas de Universa. Enquanto não chegam todas as respostas, que a gente aprenda a respeitar assunto sério como as repórteres Luiza e Mariana.
Respeito, aliás, nunca é demais. Você pode discordar de mim no Instagram.
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