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Maria Carolina Trevisan

Brasil e EUA integram cruzada internacional antiaborto

Jair Bolsonaro e Damares Alves em solenidade no Palácio do Planalto - Frederico Brasil/Futura Press/Folhapress
Jair Bolsonaro e Damares Alves em solenidade no Palácio do Planalto Imagem: Frederico Brasil/Futura Press/Folhapress

Colunista do UOL

21/10/2020 12h14

Com Jamil Chade, de Genebra

O Brasil está prestes a assinar um compromisso internacional antiaborto que deve se refletir também na política interna. Trata-se da Declaração de Consenso de Genebra, iniciativa do governo dos Estados Unidos em parceria com Brasil, Egito, Hungria, Indonésia e Uganda, que será anunciada nesta quarta-feira (22). O acordo se baseia em quatro pilares: saúde da mulher, preservação da vida, fortalecimento da família como unidade fundamental da sociedade e proteção da soberania nacional.

Na prática, o governo do Brasil faz uma ofensiva no exterior para defender a postura antiaborto e para deixar claro que o país não aceitará uma agenda nas organizações internacionais que abra brechas para permitir que educação sexual e direitos reprodutivos sejam estabelecidos e fortalecidos como políticas públicas nas dimensões da saúde da mulher e do combate à violência sexual.

É importante lembrar que essa iniciativa se insere em um grave contexto de violência contra a mulher: o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado na última segunda (19), mostrou que, no Brasil, ocorre um estupro a cada 8 minutos e que as principais vítimas (57,9%) são meninas de 13 anos, o que faz da educação sexual uma política essencial para prevenir estupros de vulnerável e violência doméstica.

A assinatura do acordo acontece num momento em que as ações do governo brasileiro estão sendo duramente questionadas por relatores da ONU, alertando sobre a politização do corpo da mulher e para o risco de tortura na busca pelo direito ao aborto legal (em caso de gravidez para vítimas de estupro). Foi o que aconteceu com a criança de 10 anos que engravidou e teve seu direito questionado e sua intimidade violada. A ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) disse não ter interferido nas tentativas de barrar o procedimento, mas evidências mostram que seu ministério agiu para impedir a interrupção da gravidez. Além disso, a ministra declarou publicamente que sua pasta "defende a vida desde a concepção".

Na cerimônia do Consenso de Genebra, o governo brasileiro apoia e copatrocina uma declaração com o governo americano para a defesa da "família" e da "vida", num texto com um forte componente antiaborto.

Além do Brasil, patrocinam a declaração alguns dos principais aliados populistas dos americanos, como a Hungria. Mas o grupo também conta com governos de países com maioria muçulmana, como Egito e Indonésia. A aliança entre islâmicos e cristãos ultraconservadores já vinha sendo registrada nos últimos meses em diferentes temas relacionados à situação das mulheres, na ONU.

O evento será liderado pelo secretário de Saúde dos Estados Unidos, Alex Azar, e pelo secretário de Estado americano, Mike Pompeo.

Os países, ao assinarem a proposta, enfatizam que "em nenhum caso o aborto deve ser promovido como método de planejamento familiar" e que "quaisquer medidas ou mudanças relacionadas ao aborto dentro do sistema de saúde só podem ser determinadas em nível nacional ou local de acordo com o processo legislativo nacional".

Num dos trechos, os governos "expressam a prioridade essencial de proteger o direito à vida, comprometendo-nos a esforços coordenados em fóruns multilaterais". Ou seja, se comprometem em agir na ONU (Organização das Nações Unidas), OMS (Organização Mundial da Saúde) e outras entidades para estabelecer esse princípio. Mas, ao citar a soberania, fica claro no documento que governos irão rejeitar qualquer postura das entidades internacionais num caminho que possa abrir supostas brechas para o direito ao aborto legal e seguro.

A aliança reafirma que "não há direito internacional ao aborto, nem qualquer obrigação internacional por parte dos Estados de financiar ou facilitar o aborto, consistente com o consenso internacional de longa data de que cada nação tem o direito soberano de implementar programas e atividades consistentes com suas leis e políticas".

O documento estabelece que "a criança precisa de salvaguardas e cuidados especiais, antes e depois do nascimento" e que "medidas especiais de proteção e assistência devem ser tomadas". Há o compromisso de "melhorar e assegurar o acesso das mulheres à saúde e ao desenvolvimento". Mas o mesmo parágrafo completa: "sem incluir o aborto".

A cruzada internacional ocorre também na Organização dos Estados Americanos (OEA), mais antiga organização regional do mundo, que reúne 35 nações e tem como principais pilares a democracia, os direitos humanos, a segurança e o desenvolvimento. O governo brasileiro passou a defender uma campanha liderada por ONGs cristãs para influenciar na pauta da organização regional. Na segunda-feira (19), a própria ministra Damares retuitou mensagens de apoio à ideia de uma "OEAprovida", ou seja, antiaborto.

Na entidade, coalizões da sociedade civil de diferentes países da região tomaram a palavra para defender uma agenda conservadora para a OEA. Além da recusa em aceitar o aborto, o grupo solicita que a OEA "respeite o direito inalienável dos pais de família a escolher a educação que recebem seus filhos, pois não é uma prerrogativa do estado, senão de cada pai e mãe de família". Uma hashtag acompanha a campanha: #meusfilhoseducoeu.

Em uma audiência no Senado brasileiro, no dia 24 de setembro, o chanceler Ernesto Araújo confirmou que um dos objetivos do governo é evitar que haja qualquer tipo de imposição por parte das entidades internacionais sobre qual rumo deve ser tomado no Brasil quando o debate é o aborto.

"Nós sempre nos posicionamos para que não haja, em textos de organismos internacionais, algum tipo de direito universal como método anticonceptivo, anticoncepção ou método de controle de natalidade", disse o ministro. "No dia em que isso tiver que ser mudado ou se quiser se mudar, tem que ser objeto de apreciação pelo Legislativo brasileiro e não vir de contrabando em textos internacionais de organismos internacionais. Essa é a nossa posição", explicou.

No Brasil, entidades de direitos humanos alertam para o retrocesso dos direitos da mulher. "Essas movimentações da política externa brasileira para minar direitos sexuais e reprodutivos das mulheres dão força para ações internas no Brasil como a portaria do Ministério da Saúde que criou entraves para o acesso ao serviço de saúde de aborto legal em casos de estupro", afirma Camila Asano, diretora de programas da Conectas Direitos Humanos.

"Países com práticas cruéis contra meninas e mulheres vão se sentir cada vez mais respaldados, considerando que Estados relevantes internacionalmente como EUA e Brasil estão junto com eles em iniciativas como essa Declaração de Genebra, que de 'consenso' nada tem por ter baixa adesão."

O país usa o conceito de "família" para justificar políticas que podem, na verdade, vulnerabilizar ainda mais mulheres e meninas.

Críticas

Em uma carta enviada ao governo brasileiro, especialistas da ONU alertam que o Executivo está violando os padrões internacionais ao publicar uma portaria que dispõe sobre a autorização de aborto nos casos previstos em lei pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O texto ainda cita o risco de uma situação análoga à tortura e aponta que uma das possíveis consequências é o aumento dos abortos inseguros. O documento foi submetido ao Brasil em 16 de setembro.

Em 27 de agosto, o Ministério da Saúde do Brasil adotou a Portaria 2.282/2020 que determinou como obrigatória a notificação à polícia por médicos, sempre que as vítimas de estupro decidirem interromper uma gravidez, sujeitando as mulheres a descrever as circunstâncias da violência sexual e a identidade do agressor aos profissionais de saúde.

A queixa foi mandada ao Brasil pelo Grupo de Trabalho da ONU sobre Discriminação contra Mulheres e Meninas, pela relatora especial sobre o direito de todos a desfrutar do mais alto padrão atingível de saúde física e mental, Tlaleng Mofokeng, e pela relatora especial sobre violência contra mulheres, Dubravka Simonovic. Eles destacaram a necessidade "urgente" de chamar a atenção do governo diante dos "retrocessos no que diz respeito ao acesso legal das mulheres e meninas à interrupção da gravidez". "Este último retrocesso normativo ocorre em um contexto de crescente recuo contra os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres", alertam os especialistas da ONU.

"Desejamos expressar nossas sérias preocupações sobre a não conformidade desta portaria com os padrões internacionalmente acordados relativos aos direitos das mulheres e meninas à igualdade, dignidade, autonomia, informação e integridade física e respeito por sua vida privada e pelo mais alto padrão de saúde atingível, incluindo a saúde sexual e reprodutiva, sem discriminação; bem como o direito à liberdade da tortura e tratamento cruel, desumano e degradante", alertam.

Uma das possíveis consequências seria o aumento dos abortos ilegais, colocando em risco a vida das mulheres. "Estamos preocupados que as limitações adicionais impostas pelo Ministério da Saúde através da Portaria 2.282/2020 possam contribuir para um aumento dos abortos inseguros, que afetam particularmente as mulheres em condições socioeconômicas precárias, em contravenção às obrigações do Estado sob as leis internacionais de direitos humanos", apontam.

Além disso, a portaria fere tratados internacionais como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ICCPR) e pelo Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ICESCR), ambos ratificados pelo Brasil em 1992, bem como a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (CEDAW), ratificada pelo Brasil em 1984.