Governo Bolsonaro usa conceito de "família" para retroceder em direitos
Com Jamil Chade, de Genebra
É cada vez mais recorrente no discurso de ministros de Bolsonaro o uso da palavra "família", inclusive no que diz respeito às políticas públicas, especialmente sobre direitos da mulher, da infância e do público LGBTQ+. Nesta quinta-feira (22), o governo brasileiro assinou um compromisso com Estados Unidos, Hungria, Egito, Indonésia e Uganda, o Consenso de Genebra. Na ocasião, o chanceler Ernesto Araújo e a ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) declararam defender "a centralidade da família", "a vida humana desde a sua concepção", ou seja, rejeitando "o aborto como método de planejamento familiar, assim como toda e qualquer iniciativa em favor de um direito internacional ao aborto ou que insinue esse direito ainda que veladamente", afirmou Araújo.
Para eles, proibir o direito ao aborto tem verniz de proteção da família. Com apenas seis países copatrocinando, a proposta fica longe de um consenso. Mas revela intenções. "Celebramos que o texto da declaração ora assinada consagre a inexistência de um direito à interrupção voluntária da gravidez", concluiu Damares.
Também nesta semana, o ministério de Damares anunciou a oferta de 50 bolsas de mestrado e pós-doutorado para pesquisas sobre "estudos demográficos e família", "gastos em políticas familiares", "equilíbrio trabalho-família", "tecnologia e relações familiares", "saúde mental e relações familiares" e "projeção econômica das famílias".
"É um momento histórico, é a primeira vez que temos políticas públicas familiares", disse a secretária nacional da família, Angela Gandra, desconsiderando outros direitos como parte do que é o contexto familiar. "Já é inédito no país o fortalecimento de vínculos familiares e mais inédito ainda é um governo que queira trabalhar um assunto desse teor de forma absolutamente científica", declarou. Não é verdade. A gestão que ela representa não inventou a pasta de direitos humanos.
O que é a família para o governo Bolsonaro? Para entender a postura governamental e os possíveis retrocessos em políticas públicas, a coluna entrevistou a professora de pós-graduação em relações internacionais Renata Nagamine, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ela também é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Suas áreas de pesquisa são religião, direitos humanos e espaço público.
Universa - A ideia de família tem sido usada para implementar medidas que podem violar direitos humanos em governos autoritários. Como nasce essa ideia e qual é seu conceito original?
A família não é uma instituição estranha ao direito internacional dos direitos humanos. Ela aparece na Declaração Universal de 1948, entre outros documentos legais internacionais, como núcleo natural e fundamental da sociedade e do Estado, tendo por isso direito à proteção de ambos (art. 16). Normalmente, associamos os direitos humanos a indivíduos ou minorias de toda sorte, mas a família tem sua inscrição no direito internacional e é uma categoria operativa quando se fala, por exemplo, de políticas sociais e de desenvolvimento, inclusive na ONU. É uma categoria em torno da qual se elaboram e implementam políticas. E o mesmo me parece ocorrer dentro dos Estados. Nós falamos, por exemplo, em renda familiar e formulamos políticas levando esse dado em consideração. O Bolsa Família, bem-sucedido programa brasileiro de transferência direta de renda, tem "família" no nome. O que estou querendo dizer é: para que políticas sejam implementadas, é preciso criar protocolos, ritos, procedimentos de vários tipos, e alguns deles são operados pela categoria "família".
O que o uso do conceito de família pode significar em termos de políticas públicas?
A família não teve sempre o protagonismo retórico e o tratamento que tem hoje. Um primeiro aspecto do problema dos usos que são feitos da família atualmente é que, desde a redemocratização, os esforços em matéria de direitos humanos se concentraram na promoção, efetivação e implementação de direitos individuais, coletivos ou de minorias sociais, ainda que sejam maiorias numéricas. A família tem, nesse período, uma dimensão sobretudo instrumental, é um meio em que as pessoas vivem, em que têm lugar práticas de cuidado, em que as crianças nascem e crescem.
Se olharmos para medidas do governo de Michel Temer (2016-2019) e do atual governo Bolsonaro, veremos alguns sinais de mudança em relação aos anteriores. Nesse período, há duas que chamam a atenção: a instituição do Observatório Nacional da Família, em 2018, e a mudança de nome do órgão que foi criado como Secretaria de Direitos Humanos pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), passou a Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, com Dilma Rousseff (2011-2016), foi recriado como Ministério dos Direitos Humanos por Temer e se tornou, com o presidente Bolsonaro, Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
O que pode significar a mudança do uso de "famílias" para "família", no singular?
Os nomes importam e os próprios atores pensam o mesmo, pois se ocupam de nomear e renomear órgãos. Temos no nome do atual ministério um marco desse processo. O que desaparece é o plural: "mulheres" por "mulher", "famílias" por "família". É uma mudança fundamental, é uma negação literal da família como experiência plural.
Outro aspecto a considerar é que esses atores partem de uma tensão entre família e Estado tal como ele era administrado por governos anteriores, ou seja, com algum compromisso com o pluralismo na vida doméstica e internacional. Esse Estado é, agora, visto como uma ameaça à família. O governo Bolsonaro tem uma imagem própria de Estado, o concebe como uma reunião de famílias. Seu esforço é, então, por reconciliar família e Estado. Essa reconciliação é feita gradualmente, por políticos, técnicos, com a formação de especialistas a serem incorporados na própria burocracia, como a concessão de bolsas de pesquisa em nível de mestrado e pós-doutorado para estudos sobre "família".
Que evidências demonstram que existe uma articulação nacional e internacional para impor políticas públicas domésticas no sentido dessa "família"?
O uso de "família" no singular no nome do ministério remete a um aspecto da ideia de família do atual governo e de outros aos quais está alinhado no plano internacional, que é a de "família natural". É interessante notar que os documentos legais internacionais falam que a família é elemento natural da sociedade e do Estado, mas não definem "família" para os seus fins, nem falam em "família natural". Refere-se a um ideário naturalista, historicamente afinado com o catolicismo e reapropriado por outras denominações cristãs. O que esses atores entendem por família é uma unidade formada por um homem, uma mulher e filhos, ou no mínimo um homem e uma mulher, na medida em que essa unidade tem potencialidade de reprodução natural. Essa ideia impõe uma série de questões.
Exclui uma boa parte dos brasileiros, portanto.
Muitos casais heterossexuais não podem se reproduzir naturalmente e recorrem a procedimentos artificiais ou à adoção. Além disso, uma parte importante das unidades domésticas realmente existentes no Brasil não cabe nela. A família no Brasil é uma experiência plural, não só em termos de orientação sexual e de gênero. Esse conceito adotado pelo atual governo retira do que se entende por família a formação que tem por base casais homo ou transexuais. O problema é a diferença sexual e de gênero, e a resistência a ela é articulada retoricamente com base na impossibilidade de reprodução natural e na naturalidade do gênero/sexo.
O Estado brasileiro pode se colocar dessa forma no que diz respeito aos direitos humanos?
O Estado brasileiro tem um longo compromisso com a construção de relações de apreciação da diferença sexual e de gênero dentro e fora do território nacional. Esses compromissos se traduzem em práticas políticas, alianças, ideias, e também se consubstanciam em resoluções, como as da OEA e do Conselho de Direitos Humanos. Não são imposições, e sim compromissos resultantes de consenso que se foi construindo sobretudo nas últimas décadas, dentro e fora do Brasil, com atuação importante do Judiciário.
Se analisamos, por exemplo, a jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos e debates dentro de Estados europeus, ou nos Estados Unidos, observamos que no mesmo período uma construção desse tipo se dá em outros espaços também, com interações entre nacional e internacional. Daí o empenho do atual governo em marcar suas posições em instâncias globais e regionais, em toda e qualquer oportunidade, por exemplo, questionando o uso de categorias como 'gênero' e 'direitos reprodutivos e sexuais', bem como seu empenho em construir novas alianças internacionais, para o que ele aproveita. Na realidade são articulações que se configuraram ainda nos anos 1990 (por ocasião das Conferências da ONU sobre populações, no Cairo, 1994, e mulheres, em Pequim, 1995) e têm se reconfigurado desde então.
Isso pode se refletir em retrocessos de direitos? Como?
Pode. Estamos falando de mudanças importantes de entendimentos e posicionamentos em duas das agendas mais disputadas e divisivas em matéria de direitos humanos: direitos de pessoas LGBTQ+ e direitos reprodutivos e sexuais. O Estado brasileiro pode ser cobrado politicamente por aquilo com o que se comprometeu internacionalmente. As ações do governo federal no plano internacional me parecem ter possibilidades escassas de angariar apoio amplo. Elas têm em vista reiterar compromissos com Estados governados por populistas de direita ou extrema direita e contemplar atores que travam acirradas disputas no Brasil, bloqueando certos caminhos a seus adversários e retirando recursos que eles poderiam mobilizar em suas ações. No problema do aborto, por exemplo, fortalecem grupos que têm atuado para obstar a sua realização em hipóteses previstas em lei.
Como antiabortistas se colocam nesse conceito de família?
A ideia de 'família natural' foi operacional nos trabalhos da Santa Sé e o que estudiosos têm chamado de 'direita cristã'. Ela também é agenciada nos debates sobre aborto porque neles a reprodução aparece como finalidade do casamento, da união familiar, e são intrínsecas a essa ideia certas prescrições relacionadas com os usos do corpo, toda uma regulação da vida que tensiona a ideia de autonomia e de liberdade de escolha.
A interdição do aborto tem sido uma agenda prioritária da Igreja Católica, e a Santa Sé tem status de observadora na ONU, aparecendo por isso um ponto de convergência em arenas globais. Desde os anos 1990, a Santa Sé direcionou suas ações nessas arenas para bloquear a inscrição de qualquer abertura que pudesse ser explorada em uma defesa do reconhecimento do aborto como direito em documentos internacionais.
Mas é uma questão que se refere tanto à Igreja Católica quanto à Igreja Evangélica? Como a religião opera para barrar o direito ao aborto legal?
O aborto não era uma preocupação primordial de evangélicos. Claro, quando falo 'evangélicos' estou falando de um universo heterogêneo, um grupo amplo e plural. Estou falando de instituições, lideranças, ONGs, que não representam propriamente "os evangélicos", mas se apresentam em seu nome e assim ganham visibilidade. Seja como for, à medida que crescem o número de evangélicos e a sua presença no espaço público no Brasil, por exemplo, suas instituições, lideranças e ONGs se abrem a novas agendas e alianças. Como pudemos ver no caso da menina do Espírito Santo grávida que buscou um serviço de saúde para interromper sua gravidez dentro da lei, o aborto é hoje um ponto de convergência importante para um grupo muito variado de atores, formado por católicos, evangélicos, espíritas, muçulmanos e conservadores não religiosos polticamente atuantes. O aborto também é um problema que deixa ver que esses atores atualmente disputam o que são os direitos humanos.
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