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Maria Carolina Trevisan

Medo e descrença na Justiça paralisam denúncias sobre estupros em hospitais

Rosineide com a filha Rafaella: jovem relatou estupro dentro de hospital - Arquivo pessoal
Rosineide com a filha Rafaella: jovem relatou estupro dentro de hospital Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do UOL

16/12/2020 04h00

É uma realidade desesperadora: uma mãe e uma avó descobrem que a filha e neta sofrera violência sexual cometida por um médico, pelo menos duas vezes, dentro de um hospital dias antes de sucumbir a uma grave doença. São três gerações de mulheres diante de uma das mais cruéis violações que alguém pode passar. Rafaella Antunes Ferreira, 22 anos, estava no finalzinho da vida quando foi estuprada. Ela conseguiu contar à mãe, Rosineide, 49, e à avó, Radineide, 75. O caso aconteceu na UTI do Hospital Geral de Vila Nova Cachoeirinha, gerido pelo Estado de São Paulo, em abril de 2018, como informa a reportagem com dados exclusivos obtidos pela repórter Luiza Souto, de Universa.

No dia em que contou sobre o estupro, o organismo de Rafaella estava falhando. Fios controlavam seus sinais vitais, uma sonda no nariz a alimentava e uma traqueostomia (tubo ligado ao pescoço) a ajudava a respirar. A estudante de enfermagem já não conseguia falar, não tinha forças para mover as mãos. Mas fez questão de ser escutada. E sua mãe a ouviu. Rosineide percebeu que havia algo de errado porque a filha passou a ficar agitada toda vez que um determinado médico estava no ambiente. Quando a mãe perguntou o motivo, ela apontou para a área genital.

Na sequência, Rosineide fez perguntas para que a filha respondesse balançando a cabeça se sim ou não, até chegar ao nome do médico estuprador e também na dimensão das violações. Pensou em pedir a remoção de Rafaella mas sua condição era tão grave que temia que a filha não resistisse. Ao mesmo tempo, tinha medo de denunciar e a jovem sofrer retaliações no leito de UTI, afinal, ela não podia estar protegendo Rafaella em sua ausência.

O ambiente hospitalar, em vez de acolher, cuidar e proteger a estudante a expôs à violência. É uma situação profundamente dolorosa para as três mulheres. Toda mãe sabe o quanto dói não poder proteger seu filho.

Rafaella foi vítima de "estupro de vulnerável", crime previsto no Código Penal em seu artigo 217, que determina pena de reclusão de 8 a 15 anos para quem "praticar conjunção carnal ou outro ato libidinoso" com alguém que, "por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência". Dias depois do crime, Rafaella não resistiu e morreu. Rosineide foi atrás da Justiça. Procurou o Ministério Público em 2019, mas até o momento não teve retorno.

"A minha mãe nem queria que eu desse entrada nessas coisas", afirma Rosineide. "Ela disse para eu deixar isso para lá. Que aqui na Terra não tem justiça. Que as pessoas que podem mais e têm dinheiro fazem o que quer e a gente não pode fazer nada. Então, ela não crê na Justiça."

Dá para entender a descrença de dona Radineide. Nesses seus 75 anos de vida, nada lhe garantiu acesso aos direitos da mulher. O caso está sendo investigado, mas o médico estuprador continua trabalhando na unidade. O hospital levou dois anos para apurar e diz que só afastará o profissional quando concluída a investigação.

"Em se constatada a infração/violência, a unidade irá adotar todas as providências cabíveis, que pode ser o afastamento ou desligamento de profissionais". Afastamento?

É chocante como se tolera e se naturaliza a violência contra uma mulher em estado grave, incapaz de se defender. Quem deve se responsabilizar pela sobreposição de dores a que esse hospital submete as pessoas é o Governo do Estado de São Paulo, responsável pelo Hospital Geral de Vila Nova Cachoeirinha.

A reportagem de Universa contabilizou 82 boletins de ocorrência semelhantes de denúncia de estupro em hospitais entre 2018 e outubro de 2020, 22 em unidades particulares e 21 em locais geridos pelos governos estadual e municipal, situação agravada na pandemia.

Estamos lidando com um problema ao mesmo tempo cultural, porque tolera situações como essas, e também de falha na rede de defesa dos direitos da mulher. É preciso ao mesmo tempo trabalhar na prevenção, no âmbito escolar, desde cedo, e na repressão a esses crimes sexuais.

Não dá para dizer que a avó de Rafaella esteja equivocada. Mas quanto menos denunciamos as violações que testemunhamos, pior é. Por isso, o empenho de Rosineide vale a pena. A ela devemos juntar todo o nosso apoio e solidariedade, incluindo os homens. A responsabilidade é de todos nós.