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Maria Ribeiro

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Vamos devorar Zé Celso e fazer de sua morte um novo Carnaval

Colunista de Universa

06/07/2023 17h25

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Enquanto escrevo esse texto, Zé Celso não está mais aqui. "Aqui", muitas vezes, é uma palavra ampla. Dependendo da circunstância, corre o risco —e a ventura— de ser relativa. Pode ser uma cidade, um órgão do corpo, um cômodo de uma casa. Mas não nesse caso. Aqui é a data de hoje, um conceito palpável, grave, absoluto. Um X para sempre no calendário brasileiro.

José Celso Martinez Correa não está mais aqui. Agora, e a partir de hoje, cabe a nos reparti-lo. Anotem aí: 6 de julho de 2023. Dia de engolir Zé Celso. Na prática, isso significa, antes de mais nada, amar. Amar e perdoar, amar e dançar, amar e lutar, amar e cantar. De preferência, na rua, e, obrigatoriamente, em grupo. "Cortar o amor é castrar", costumava dizer.

Quando vi "Cacilda", sobre a vida da atriz Cacilda Becker, em 1998, entrei em choque. Acostumada aos palcos cariocas, vinda de uma escola que misturava Tablado e Domingos Oliveira, minha cabeça virou do avesso. "Cacilda" não era uma peça de teatro, Cacilda era uma carteira de identidade, uma ideia de país, uma experiência metafísica. Ali, Bete Coelho reafirmou, como nenhuma outra colega jamais fez, minha vontade e certeza de ser atriz.

Sou atriz, e como devota de Baco, tiro a roupa das palavras que escrevo a seguir.

Tenho uma proposta para esse julho Bobardiano. Sejamos todas bacantes, mulheres e homens. Vamos devorar Zé Celso, aderir ao Oficina, absorver seu cérebro, seu sexo, sua militância. Vamos falar do diretor nas escolas, nos táxis, nas mesas, vamos fazer da sua morte um novo Carnaval, com bandeira, hino, fantasia, subversão. Vamos brigar pela praça do Bixiga, vamos encarnar José.

José é um nome comum, e é assim que as pessoas extraordinárias se veem. Como pessoas comuns. Oficina vem de trabalho. Da não glamourização de um ofício que é tão nobre quanto qualquer outro. Um ofício que virou um espaço que sobreviveu ao regime militar, ao Silvio Santos, a um incêndio em 1966 e a uma invasão da polícia em 1974.

Tivemos um episódio curioso. Estava na casa dos 20 anos e tinha ido ao cinema com meu então marido, o ator Paulo Betti. Na saída do filme, ainda me recuperava da cena final de "Festa de Família". Aquele pai, aquele filho, o incesto, o abuso, a violência, a dramaturgia do Dogma.

No saguão do Estação Botafogo, encontramos Zé e seu companheiro Marcelo Drummond. Paulo se ofereceu para levá-los ao hotel onde estavam hospedados. No carro, falando sobre o filme, Zé se espantou com minha revolta, que chamou de moralismo. "O pai amava o garoto, minha filha". Fiquei muda. E nunca me esqueci daquele episódio. Zé Celso era um provocador, e um garoto propaganda do amor.

Nunca trabalhamos juntos. Mas, no intenso convívio com Fauzi Arap, ouvi histórias antológicas sobre a montagem de "Pequenos Burgueses". Que inveja eu sentia da efervescência daqueles desbravadores.

Hoje é dia de festa. Que, em sua casa, todos cantem e dancem. E usem branco. E carreguem flores. Que, em suas trajetórias, todos possam se casar aos 86 anos e morrer no Paraíso, exatos trinta dias depois.