Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Era louca por meu pai sedutor. Mas quem estava nas febres era minha mãe
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Ontem, enquanto escrevia a coluna de hoje, minha mãe caiu. Com ela, fomos Sinéad O'Connor —que era o tema do meu texto— Fernanda Young, eu, a seleção feminina de futebol e metade das mulheres das quais sou feita. Pela distância ou pela identificação.
As de cabeça raspada e as de cabelos impecáveis, as pianistas e as roqueiras, as cristãs e as transgressoras, as boleiras e as que, como minha mãe, parecem nunca ter saído das fotos em preto e branco. Somos de onde viemos e também seu avesso, até que a vida —ou a morte— nos coloque todas na mesma mesa. E como é bom entender (logo, sussurro aqui) que esse tempo passa rápido. Nunca é logo o bastante, mas na medida em que isso é possível, recomendo (e agora falo firme).
A proximidade do substantivo "mãe" com um verbo no passado —e ainda mais esse, "caiu"— me atirou imediatamente ao chão. Que é o lugar de onde escrevo, descalça de tudo que não é filiação.
Perdi meu pai dez anos atrás —e até hoje não tive coragem de tirar seu nome do meu telefone. Era louca por ele. Um sedutor carismático com quem ainda hoje faço ajustes, a despeito de sua ausência.
Leonidio, como todo homem separado (e machista) dos anos 1980, me via de vez em quando. Aquele esquema clássico de uma época que felizmente se foi. Uma vez por semana. Dois finais de semana por mês.
Suas aparições, até pela vantagem matemática, eram sempre perfeitas: não havia a palavra "não" nos nossos dias, o que por muito tempo recebi como ilha da fantasia. Fake news braba. Do tipo pior que Papai Noel. Com todo o amor, pai. Crítica construtiva.
De uns tempos para cá, com minha mãe cada vez mais velha, tudo o que faço é olhar de novo. Quem é que ficou de verdade? Quem estava nas febres, nas ave-marias, nos supermercados? Quem organizava os aniversários, os Natais e se preocupava em reunir a família? Quem levava meus cães ao veterinário e sabia de todos os segredos da vida miúda?
Aquela que ontem caiu. Que chamo de mãe há 46 anos (e que gostaria, se der, de chamar um pouco mais). "Mãe!", vou falar hoje. 87 vezes. Mesmo que ela não escute (ela não escuta). Mas meu corpo há de gravar esse som. Internada em uma cama de hospital, ela pede um livro.
Lembro de Sinéad O'Connor. Da melancolia que as une. Do papa que as separa. E da condição que nos coloca nas mesmas filas. De um gênero que merece muito mais atenção e respeito. E de um fim —esse, sim, democrático— que deveria ser mais lembrado.
Contra ele, palavras doces e dias de amor.
Flores em vida, como dizia Nelson Cavaquinho.
Ou: nada se compara a você, como dizia Sinéad.
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