Maria Ribeiro

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Opinião

Luísa Sonza, gosto de quem se expõe e vai em frente olhando para trás

"Caótica. Intensa. Inteiramente fora da realidade da vida". A fala é de Clarice Lispector, mas está em "Se eu Fosse Luísa Sonza", série documental da Netflix sobre a vida da pop star gaúcha. O uso do trecho da última entrevista da escritora, gravada em 1977 e exibida somente após sua morte, não é à toa. Ao responder ao repórter da TV Cultura sobre sua obra na juventude, Clarice nos conecta a Luísa. E nos embaralha os neurônios. Como assim associar um dos maiores nomes das letras brasileiras a uma celebridade produzida pela internet?

Respondo perguntando, à la Tom Zé, sugerindo aqui outra associação improvável. O que é exatamente uma "celebridade" da internet? E o quanto de preconceito existe nessa classificação? Por que, afinal, levamos o termo — sinônimo, em tese, de notoriedade — a um lugar tão pejorativo? Por que sinto necessidade de colocá-lo entre aspas?

Eu nunca tinha parado para ouvir as músicas de Luísa. Mesmo entrevistas, acho que só havia visto, em cortes no Instagram, a que ela concedeu este ano a Ana Maria Braga. A respeito do namorado/ex-namorado. Na época, me lembro de ter ficado incomodada com o tamanho do barulho e com o que me pareceu uma jogada de marketing. Como se a exposição de sua vida íntima como forma de alimentar o interesse pelo seu álbum me impedisse de respeitá-la como artista.

Mas será que é só isso? Eu gosto de quem se expõe. De quem vaza, na obra, o que ainda é construção. De quem tem coragem de errar em cena, de exibir os avessos, de naturalizar o lado B, de chorar em público. Sempre fui desse time. Por que então, a implicância com uma mulher cuja história conheço por títulos de matérias que não leio? De quais substâncias são feitas as nossas identificações?

Talvez informação seja uma delas. Não só, mas também. Luísa nasceu em uma cidade de 7 mil habitantes no interior do Rio Grande do Sul. Cercada de mulheres, criada com a mãe, a avó e a bisavó, começou a cantar aos cinco anos de idade. Aos 7, ingressou em uma banda, e na adolescência ficou conhecida por fazer covers no YouTube.

Eu, no entanto, a conheci e a julguei por sua vida amorosa o que é extremamente machista. "Pronto, não preciso de mais nada", devo ter pensado, ainda que não me desse conta. E como é mais prático viver assim... Dedo na cara, cancelamento, carimbos. Na rapidez dos dias que passam na velocidade dos áudios acelerados de WhatsApp, opiniões enlatadas nos poupam de ideias próprias.

Mas eu gosto de não ter certezas. E a série dirigida por Isabel Nascimento Silva e produzida pela Conspiração fez o favor — ou o desfavor — de me oferecer esse nó. Luísa Sonza definitivamente não cabe em um tuíte.

Ao contrário. Podemos problematizar a indústria atual da música pop — e recomendo muitíssimo o recém-lançado curta-metragem musical de Manu Gavassi, "Pronta pra Desagradar" — e o excesso de valor atribuído a likes e seguidores, como se essa fosse a régua do que é considerado sucesso.

Não deveria ser. E se me emocionei com o talento, a dor e a espontaneidade de Luísa, também questionei o pouco espaço dado na série ao tema mais urgente e relevante do Brasil.

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Traição é chato, dói. Hate é difícil, mas faz parte. Agora, racismo, racismo é outro tipo de lágrima. Racismo é crime. Que Luísa não se abstenha — como não se absteve — de falar sobre esse episódio da sua vida pessoal, e faça disso uma causa pra sempre, pra que a gente, e agora me incluo como mulher branca, possa ir em frente olhando pra trás. Não só pedindo desculpas, mas colocando nos trends uma palavra fundamental: reparação.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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