A tragédia no RS vai durar muito tempo. É preciso falar sobre saúde mental
Nunca fui boa de dormir fora de casa. Eu me lembro, quando criança, de ver minhas amigas fazendo planos de festa do pijama e de já sentir meu coração acelerando desde ali. Porque eu já sabia, e morria de culpa por isso, que muito provavelmente eu não seria capaz de atravessar a noite com elas. Não sem sentir falta de ar, enjoo ou pânico.
É claro que na época eu não tinha a menor ideia de que eu era uma menina angustiada. Aliás, eu nem sequer conhecia essa palavra. Na minha cabeça de 8, 9 anos de idade eu apenas sentia uma saudade desesperadora de estar com a minha mãe.
Curioso - e só agora me dou conta disso - é que não me recordo de, em nenhum momento, sentir ou dizer que precisava voltar pra casa por estar sentindo falta do meu pai. Talvez porque eu já soubesse que, com seu pragmatismo, seria impossível tentar explicar o que se passava, ainda que de forma confusa, em meu cérebro infantil.
Já a minha mãe, mesmo não entendendo exatamente a minha aflição, estava sempre disposta a me ouvir. Mesmo que o discurso fosse sempre meio envergonhado e, claro, toscamente elaborado. E mesmo que ela achasse tudo muito dramático e incompreensível, afinal "sua filha era sensível demais...".
Uma das maiores solidões que existem mora exatamente no que sentimos com extrema clareza, mas que ainda não conseguimos nomear. Outra na expressão "imagino como deve ser difícil". Não, ninguém é capaz de imaginar o que sente uma pessoa em crise de pânico, nem uma pessoa em depressão e muito menos uma vítima de um trauma.
Estamos diante de um trauma. O que está acontecendo nesse momento no Rio Grande do Sul - e que já dura tantos dias - ainda vai durar muito tempo. Assim como a covid e seus milhares de mortos - com famílias que ainda hoje estão de luto - as cidades devastadas, os mortos e desaparecidos, e os gaúchos que perderam suas casas, seus parentes e seus trabalhos, seus passados e suas ideias de identidade, tudo isso vai durar tempo demais pra que a gente não possa estender a mão, seja ela qual for, na direção do sul do país. Pra quem está longe como eu e não sabe como agir além de fazer uma doação, eu gostaria de sugerir aqui um projeto de escuta. E não só sobre os dias de horror.
Às vezes, na vida, a gente é o cachorro que segue nadando mesmo quando a água se foi. Um movimento automático de luta, de sobrevivência, de exaustão, mas sobretudo de estresse. "Preciso continuar nadando porque nada e nem ninguém virá ao meu socorro. Aqui, no meio da água, sou eu e eu e o estado de alerta é tudo o que o meu corpo me permite". Não há a perspectiva alguma de coletividade até que um filho de Deus me prove o contrário: que se importa.
Sejamos essa prova, Brasil. A vida já é um mar de solidões e de faltas de garantias e de amores que acabam e de álbuns de infância alagados. Em horas como essas, falar de saúde mental deve entrar em qualquer manual de primeiros socorros. São milhares de angustiados com saudades de suas casas, em pânico, sozinhos e sonhando com suas mães e suas camas ou, no mínimo, com alguém que atenda o telefone no meio da noite. Que esse alguém seja cada um de nós, e que a pauta da saúde mental entre de uma vez por todas na sala de jantar.
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