Maria Ribeiro

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Opinião

O tempo não pausa para ninguém. Nem para chegadas, nem para partidas

Usei meu vestido de noiva duas vezes. A primeira, obviamente, no dia do meu casamento. A segunda, para fazer um filme na Avenida Paulista, em São Paulo, é claro. O cenário, como bem provou a Parada Gay do último domingo, pode vir repleto de cenas de amor, e quem dera fosse sempre assim. Mas, como quase tudo na vida já nasce com seu avesso, o contrário também é uma placa de alerta. Às vezes logo de cara, às vezes com o passar do tempo, quase sempre em letras miúdas, como foi o caso de 2018.

Em 2018, fiz um documentário chamado 'Outubro', onde, a partir da ideia do "Ele, não", eu comparava a negativa do cenário político com o fim de uma longa história de amor. Foi para uma cena desse documentário que usei meu vestido de noiva na Avenida Paulista.

Até hoje não sei bem o motivo de ter usado uma roupa que havia sido feita especialmente para dizer sim, para fazer exatamente o oposto. Mas eu precisava desfazer alguns pactos e dizer 'não' fazia parte do pacote. Não para o amor, não para as pesquisas de voto, não para morte do peixe do meu filho, não para existência de um ano que nunca deveria passado no VAR do Congresso.

Mas, na falta de poder para fazer revoluções efetivas, criei a minha. Inventei uma noiva bem louca, bem rebelde, bem transgressora. E aqui cabe um PS: devido às declarações da última semana do jogador que um dia me fez torcer pelo Santos, louca é um adjetivo que só eu posso usar para mim mesma, combinado? Mas, voltando. Eu queria protestar. Estava triste, machucada, com raiva. Queria subverter as regras dos figurinos, mudar as coisas de lugar, embaralhar memórias boas com outras nem tanto, confundir meu cérebro, minhas fotos, meus lutos, meu coração, meu calendário, os eventos que imaginava serem marcos da minha vida.

Eu havia desfeito uma família, enterrado duas grandes amigas, saído de um trabalho que eu adorava, perdido meu maior amigo para um infarto e deixado para trás um namorado violento, abusivo e apaixonante que eu demorei a enxergar.

Às vezes só o tempo é capaz de transformar em verbo os registros do rolo de câmera.

Lembrei de tudo isso porque ontem enterrei outro amigo e com ele um pedaço de quem eu fui, porque a versão que pertencia a ele e da qual eu não tinha qualquer controle ou consciência, só existia ao seu lado. De alguma forma, portanto, morremos os dois.

Mas nem todas a mortes são tristes. E nos últimos dias, muitas coisas também nasceram. Que o tempo, graças a Deus, não pausa para ninguém, é absolutamente democrático para as chegadas e para as partidas.

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Então, eu vi meu caçula ganhar do irmão o seu primeiro vinil, vi a Alaíde Costa cantar Dindi com o João Camareiro, vi o Wagner Moura contracenando com o Donald Glover, vi a Susy e a Martha Nowill falando coisas incríveis usando roupas de um azul Djavan, vi a Vanessa Cardoso no tapete vermelho de Cannes, vi minha mãe tentando lembrar o Chopin que ela sabia de olhos fechados.

Por fim, vi a Débora Falabella em um dos trabalhos mais bonitos dos últimos tempos. Prima Facie é um espetáculo perfeito, onde tudo parece existir porque assim era o certo: aquela atriz, aquele texto, aquela direção, aquele cenário, aquele figurino, aquela produção, aquele tema.

Como vocês estão vendo, a vida é o que acontece enquanto a gente faz planos. Eu queria falar do mar de beleza que vi na Parada de domingo, de peça da Débora, do texto da Suzie Miller, das violências ainda frequentes contra a mulher. Queria dedicar essa coluna para o Mauro Loos e para o Léo Galvão, que me ensinam o que é amor muito antes que eu entendesse todas as siglas LGBTQIA+, mas meu teclado consegue ser ainda mais rebelde que eu.

De qualquer forma, no final das contas, se a gente pensar bem, todas as linhas aqui de cima são sobre coragem, arte e justiça. Essa é a roda que me leva para frente. E para isso, ninguém precisa se vestir de noiva e fazer juramentos definitivos, a não ser que a gente faça um reposicionamento de marca das vestimenta de compromisso, e eleve e a velha camiseta de algodão como o dresscode perfeito para fazer fazer planos eternos.

Mais ou menos como eu estou fazendo nesse exato instante em que escrevo esse texto, com meu namorando dormindo ao meu lado, numa celebração, que embora aconteça em silêncio, seja cheia de projetos românticos.

Boa semana, gente,

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E bom 12 de junho pra geral! Lembrando que o romance principal é sempre da gente com a gente mesma, e essa dupla nunca falha!

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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