Onde você consegue descansar a cabeça? E qual é sua ilha de certeza?
Primeiro, eu queria agradecer. Porque isso que a gente criou junto aqui -uma coluna falada, onde a troca é real e comovente-, pelo menos do meu lado da tela, tem sido uma verdadeira ilha de certeza. Em meio à absoluta falta de garantia da vida, nada como encontrar dois ou três lugares para pousar a cabeça.
As vezes, esses lugares de descanso são coisas de comer, por exemplo. Como, sei lá, um chocolate específico que vira um colo certeiro no fim do dia. Ou o cheiro de uma vela, um perfume da infância ou de uma pessoa - o cabelo da minha mãe, por exemplo, nunca falha no departamento "terapias alternativas e imediatas".
Esses lugares, com alguma frequência, também podem ser descobertos em obras e artistas. Em minha trajetória, a arte é peça chave. E não porque trabalho com isso, mas porque não poderia viver sem dramaturgia.
Desde menina, me sinto acompanhada por escritores, atores, músicos, bailarinos e cineastas que jamais conheci. Alguns porque já morreram, outros porque são, 'em parte', inacessíveis. Digo 'em parte' - e uso aspas - porque realmente não acho que eu preciso jantar com a Maria Bethânia para que ela me faça feliz. Sua voz é suficiente e poder ouvir o que ela canta é um privilégio do qual tenho consciência.
As falas recentes da atriz Cate Blanchet sobre Clarice Lispector (dentre elas, essa, da "ilha de certeza") ditas em um festival de cinema espanhol, ainda ecoam nas redes sociais e me pegaram em alguns pontos.
De fato, foi incrível. Uma atriz forte como ela, que equilibra com maestria talento, looks e uma aparente ausência de deslumbramento com a fama, realmente faz uma dupla de milhões com Clarice. Assim como Fernanda Montenegro e Simone de Beauvoir, que no meu imaginário são amigas de infância e trocam gifs. Não há hierarquia alguma na relação. Nem de tempo, nem de nacionalidade, e nem de convívio físico.
Cate sabe disso. E cumpriu um exercício revolucionário e, graças a Deus, cada vez mais frequente: levantou outra mulher. Escritora. Brasileira. Imigrante. Que segue existindo, mesmo não existindo mais.
Em algum momento, creio ter pensado de forma meio colonizada, tipo: 'Nossa, que luxo uma atriz do Oscar falando dos textos da nossa grande esfinge'. Depois, corrigi a rota: 'Que bom para Cate Blanchet que ela teve acesso à Clarice Lispector! Imagino sua alegria. Seu prazer com descoberta tão sublime'. Os ganhos são, portanto, equivalentes. Aliás, não há subtração quando dividimos com o público sobre quem frequenta nossas ilhas de certezas.
Acabo de voltar de uma viagem importante, daquelas que marcam capítulos, e que, se bobear, valem até uma tatuagem. Venho com lembranças lindas e outras mais difíceis, mas que se tornam igualmente poéticas quando penso em como é comovente juntar medo e coragem no mesmo rolê.
A propósito, comover nada mais é do que "mover com". Andar junto. Mudar de mãos dadas. Ouvi isso do meu irmão Otavio e achei inesquecível e útil. Em grupo, executar movimentos maiores fica mais fácil. Mais fácil e mais humano. Daí minha propaganda recorrente das tecnologias amizade, empatia e generosidade.
E já que estamos falando de artistas, e especialmente de Clarice Lispector, gostaria de dedicar esse texto à Maria Fernanda Candido, outra atriz imensa e que há tempos fala da importância dos livros de Clarice.
Minhas ilhas acabam de ficar maiores.
Pensando bem, gigantes.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.