Ainda estou aqui: Eunice Paiva reinventou o significado da palavra vitória
- Filho, vamos ver 'Ainda Estou Aqui'?
- Não, mãe. Vou com meus amigos.
Bom, só esse diálogo já me deu mais dez anos de vida. Bento, 14 anos, um adolescente com quem aprendo diariamente - e que recentemente descobriu 'Cidade de Deus' e 'Tropa de Elite' - queria ver um filme sobre a ditadura militar do nosso país. E não queria ver comigo, como uma espécie de "programa-aula", mas, sim, com a sua turma, como um "programa-programa".
E é justamente assim que a gente absorve as coisas. Quando não está preocupado em absorver. O filme do Walter Salles virou o grande acontecimento do fim do ano, e quem não vir, lamento, vai realmente estar por fora das conversas do Natal e dos eventos de amigo secreto (socorro!).
Bom, sem o filhote, acabei indo ao cinema sozinha - o que amo e recomendo - e saí com várias frases que me tiraram o sono. "Tem que rebobinar"- sim, temos, e não só na expressão de época. Essa historia aconteceu ontem, e muitas famílias revivem até hoje dias que jamais se perderão no calendário.
"E o corpo?", pergunta Fernanda Torres, uma atriz que dá vontade de colocar na bandeira (e que é muito maior do que o Oscar, embora, claro, estejamos na torcida). Pergunta: existe algum país no mundo com uma mãe e uma filha como as Fernandas Torres e Montenegro? Você já agradeceu por isso em algum momento da sua existência?
Mas "e o corpo?" , continuo. Acho que de todas as cenas que me vêm a cabeça, a que mostra a foto em que Eunice Paiva comemora sorrindo com filhos o recebimento de um atestado de óbito que demorou 25 anos para sair, foi a que mais que quebrou. Tem gente que vira os dicionários do avesso. Eunice reinventou inúmeros conceitos e paradigmas, entre eles, o do significado da palavra vitória.
Antes disso, seu desamparo diante da parte supostamente masculina da divisão de tarefas (como bancos e pagamentos), já tinha ecoado em um desamparo que volta e meia ainda sinto, que vi na minha mãe, em mim, e nas milhares de mulheres que estão à frente de suas famílias. E olha que estou falando de divórcios e abandonos, quase um vento leste perto do furacão que passou pelos Paiva.
Vi o filme no cinema Leblon, apenas alguns metros da casa onde meu amigo Marcelo -o que escreveu o livro que deu origem ao roteiro- viveu. Uma praia que, apesar de tudo, sei que carregara para sempre. Como os jogos de totó e de botão, que não estão no filme, mas seguem com ele e com seus filhos Joaquim e Sebastião. E agora com a gente. Obrigada, Selton. Você é um ídolo da vida inteira.
Esses dias acordei com a notícia de que mais de um milhão de brasileiros viram 'Ainda Estou Aqui'. Sei que cinema é caro para grande maioria da nossa população, e que o ideal seria que essa história chegasse em todo mundo. Pensei nisso quando vi a personagem Zezé, funcionária da família, e pensei de novo quando me despedi dos funcionários do cinema que recebiam, gentilmente, as bandejas de pipoca.
Mas, a despeito da questão da desigualdade do país, queria terminar essa coluna - imensa, que me desculpe o algoritmo - com uma observação: estamos quase todas vestidas com as roupas (fundamentais) do feminismo, e Eunice Paiva é um nome para gente gastar sem medo. Mas fico feliz de ver seu nome ganhar destaque pelo olhar de dois homens.
Não deveríamos estar em lados opostos. E se Eunice Paiva está na boca do povo por ter sido retratada por dois artistas, a gente fica mais forte. Todos nós. Em meu nome e em nome do meu filho de catorze, agradeço comovida.
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