Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Na Semana da Mulher, uma reflexão sobre as mães, os filhos e as guerras
É impossível não se comover com as imagens que chegam da guerra. De qualquer guerra. Mas as que mais me chocam são as de crianças chorando, se despedindo de seus pais e mães, como temos visto diariamente na Ucrânia. Tem até crianças sendo presas na Rússia por participação em protestos. E imaginar que ao longo de anos e anos de combates pelo mundo tantas crianças já morreram, estão morrendo ou ainda vão morrer. Infância roubada, destruída.
Em 1940, a russa Nadezda Pokrovska se despediu do filho Nikolaus, então com 18 anos. Eles viviam na Romênia, que faz fronteira com a Ucrânia, e ele tinha sido convocado para lutar na Segunda Guerra Mundial contra os nazistas. Era a última vez que se veriam por muitos anos. Em 1945, quando a guerra acabou, Nikolaus estava ferido num hospital e tinha perdido o contato com toda a família. Então, conheceu Elisabeth, que tinha nascido em Pilsen, na Tchecoslováquia, e era filha de alemães. Nadezda estava em algum lugar do mundo chorando pela perda do filho mais velho, sem saber se ele estava vivo ou morto. Sofrimento de mãe.
Casados, Nikolaus e Elisabeth tentaram recomeçar a vida, mas estava difícil. Muito fraca, por causa dos anos de guerra em que passou fome e todo tipo de privação e violência nas fugas e nos bunkers, Elisabeth chegou a perder 3 bebês que nasceram e não tiveram condições de sobreviver. Sofrimento de mãe.
Quando Elisabeth estava grávida do quarto filho, em 1948, ela e Nikolaus deram entrada como refugiados na França e conseguiram embarcar num navio rumo ao Brasil em busca de uma nova vida.
Elisabeth passou anos contando histórias da guerra para a neta. Essa neta sou eu, filha daquele bebê que chegou na barriga em 48. Sou a neta mais velha da vovó Beth e do vovô Nick e essas narrativas fazem parte da minha vida.
A cena mais marcante para mim foi a do reencontro do meu avô Nikolaus com minha bisavó Nadezda, a babushka (avó em russo). Nos anos 50, ele voltou para a Europa com o objetivo de procurar a mãe. Fez uma peregrinação pelos campos de refugiados. Finalmente a encontrou em Trieste, na Itália, e a trouxe para o Brasil. Ela estava com a neta, que também tinha perdido a mãe, minha tia Tanja, que anos mais tarde foi localizada na Austrália. Outro sofrimento de mãe. De mães. Tantas mães.
Cresci ouvindo as histórias da guerra e me tornei jornalista para continuar ouvindo o que as pessoas têm para contar. Jornalismo é saber perguntar, mas também é saber ouvir o outro.
Em 2016, gravei um Programa Papo de Mãe sobre mães refugiadas no Brasil. Anne Tape, uma refugiada da Costa do Marfim, na África, tinha fugido de uma guerra civil. Chegou aqui grávida, sem absolutamente nada, deixando pra trás inclusive a filha mais velha - que só conseguiu trazer muitos anos depois. Mais um sofrimento de mãe.
Dói vermos as imagens de mães se despedindo de suas crianças em regiões de conflito ou bebês passando de colo em colo para escapar nas fronteiras. Desesperador.
Aqui no Brasil, as mães também enfrentam batalhas diárias. Se as mães citadas acima foram vítimas de "guerras externas", no nosso país eu diria que existem algumas "guerras internas", ou "guerras eternas", já que os assassinatos aqui muitas vezes ultrapassam os registrados em países em guerra de fato.
Em sua coluna mensal no site Papo de Mãe, a pedagoga Tatiane Santos, de São Paulo, a Pretinha Educadora, escreveu: "Ser mãe de menino negro é ter medo que eles andem pela noite na rua, ou até de dia, e que sejam confundidos com bandidos". É a guerra do dia a dia que enfrentam aqueles que sofrem o racismo velado ou relevado, declarado, estrutural ou institucionalizado no nosso país. É ter medo que seu filho seja assassinado por ser preto. Como, infelizmente, muitos casos que já vimos acontecer. Sofrimento de mãe.
E o Brasil vive ainda uma outra guerra, em geral ainda silenciada: a da violência doméstica, que coloca o país em 5o lugar no ranking dos países que mais matam mulheres no mundo.
Maria, do Ceará, sofreu duas tentativas de feminicídio. Sobreviveu, mas ficou numa cadeira de rodas. Porém, isso não a imobilizou, pelo contrário. A fez lutar por ela e por outras mulheres, a ponto de conseguir a criação de uma das principais leis do mundo para proteger as mulheres: a Lei Maria da Penha.
Maria da Penha Fernandes, mãe de 3 filhas, chegou a ficar meses afastada das meninas enquanto se recuperava. Por pouco não entrou para a estatística dos feminicídios brasileiros - a das mulheres assassinadas pelo fato de serem mulheres. Sofrimento de mãe. De mães. E de filhos. E de filhas.
É também por tudo isso que eu narrei acima que o dia 8 de março é necessário. Enquanto mulheres ainda sofrerem, forem discriminadas e assassinadas por serem mulheres, é preciso um dia para protestar, chamar a atenção, refletir. E você sabia que a maioria das mulheres vítimas de feminicídios no Brasil é formada por mães? Assassinadas, inclusive, pelos pais dos próprios filhos. Pensem em quantos órfãos esta violência deixa todos os dias. Elas são mortas dentro de casa por quem dizia amá-las.
Mães não deveriam ter seus filhos arrancados. Mães não deveriam sofrer. Mães não deveriam morrer. Utopia, eu sei. Impossível, eu sei. Mas não seria possível evitar pelo menos a guerra? O racismo? A violência de gênero? O feminicídio?
O dia 8 de março é considerado o Dia Internacional de Luta pela Vida das Mulheres. Não é "apenas" o "dia da mulher". Há várias versões sobre a origem da data. Uma delas conta que no dia 8 de março de 1917, na Rússia, um grupo de mulheres marchou pelo fim da fome e da 1a Guerra Mundial. A data só foi oficializada pela ONU em 1975. Pela vida, pela igualdade, pela paz. Aceitamos flores, mas, acima de tudo, queremos respeito.
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