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Mariana Kotscho

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Nunca tantas crianças foram mortas por tiros no país: por quê?

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista de Universa

09/10/2022 04h00

Quem não se revolta com o volume de notícias que surgem todas as semanas de casos de crianças mortas por armas de fogo é porque realmente não está entendendo a gravidade do que estamos vivendo. Nunca tantas crianças foram mortas por tiros no país: tiro acidental, intencional, de outra criança, de outro adulto, da polícia. Tem de tudo. Afinal, a circulação de armas nas mãos de civis no Brasil teve um aumento de 65% entre 2018 e 2020 de acordo com o Instituto Sou da Paz.

Há algo que me parece tão óbvio: mais armas em circulação, mais mortes. Mesmo assim, temos defensores fervorosos que querem armar o dito "cidadão de bem". Arma não defende ninguém, ela foi feita para matar. Que saudades da minha época de adolescente, quando fizemos no país um grande movimento pelo desarmamento da população.

Entre as tragédias noticiadas, vemos casos de crianças matando outras crianças em casa, "sem querer", "porque pegou a arma do pai". Ou cometendo assassinatos nas escolas porque tiveram fácil acesso ao armamento. Sim, tudo isso aqui no Brasil. Daí, os armamentistas vêm com um papo de que "se não fosse a arma mataria de outro jeito". Não é verdade. Se o pai não tem arma em casa, a criança não mata. Ora, todos os estudos já provaram que uma discussão que termina em soco tem muito menos risco de terminar em morte. E, até mesmo para ferir alguém com uma faca, é preciso o contato próximo. Balas matam de longe, inclusive as chamadas balas perdidas.

Em artigo publicado recentemente no meu site, a cientista social e especialista em direitos das infâncias Erika Tonelli mostrou que o número de internações hospitalares provocadas por armas em crianças de até 14 anos aumentou muito nos últimos anos.

Outra tristeza que Erika destaca é a volta de sessões exclusivas de armas de "brinquedo" em lojas especializadas e a naturalização disso, com adultos presenteando as crianças com estes "brinquedinhos", mesmo tendo a proibição pelo Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/03).

Destaco abaixo alguns pontos importantes do texto de Erika Tonelli:

"Ao analisar os dados de acidentes com crianças de 0 a 14 anos de idade, levando em conta a base de dados do DATASUS (Informações de Saúde TABNET), Causas Externas (CID 10), por local de residência e óbitos, chegamos os seguintes números ao compararmos 2018 a 2020:

Tivemos como aumento percentual nas causas de óbito: armas de fogo (25%), intoxicações (23%), quedas (12%). Os sinistros de trânsito ainda configuram como a forma mais letal de acidentes com crianças menores de 14 anos, mas o aumento nos acidentes envolvendo armas de fogo tem um crescimento exponencial de um ano para outro. Na faixa etária de 10 a 14 anos, se abrirmos esse dado, tivemos um aumento no número de óbitos nos acidentes com armas de fogo de 67%. Claro que ao ver o número geral em si, isso representa um aumento de 5 crianças, o que não significa um número tão expressivo frente a população infantil brasileira.

Mas, ao ver os dados apontados pelas duas pesquisas referenciadas acima, aguçou a vontade de pesquisar mais afundo os acidentes envolvendo armas de fogo e crianças menores de 14 anos. Ampliei o espectro da pesquisa do Causas Externa (CID 10), inserindo as categorias Grande grupo de causas externas, diretamente no Tabnet (dados públicos que podem ser acessados no site do Ministério da Saúde): agressões, intervenções legais e operações de guerra, eventos cuja a intenção é indeterminada, fatores suplementares relacionados a outras causas; e selecionando na categoria causas: projetil de revolver, rifle espingarda armas de fogo de maior tamanho e projéteis de arma de fogo e das NE. Apenas no recorte temporal de março de 2021 a Março de 2022, Morbidade Hospitalar no SUS, por Causas Externas, faixa etária de 0 a 14 anos, chegamos ao número de 128.532 casos de internação relacionados "apenas" por arma de fogo."

O escritor Vinicius Campos também publicou um artigo em meu site sobre o mesmo tema, em sua coluna Filhos de Todas. Com o título "Em 2021, sete crianças foram assassinadas por dia", Vinicius contou com alguns especialistas para fazer uma análise desta trágica realidade.

"No Brasil, por incrível que pareça, não há um registro nacional da violência que ocorre. O governo não tem números unificados que retratem a segurança, ou a falta de segurança, do nosso povo. Por isso nasceu o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma organização não governamental que reúne os dados dos diferentes Estados e todos os anos faz um anuário que nos mostra como está o nosso País no quesito da segurança" explicou o colunista no início do texto.

Vinicius Campos é um dos organizadores da campanha "Quem tem filho não vota em arma, vota em livro", que nasceu como um grito de revolta e indignação de pais e mães que entendem que a bancada da bala no Congresso Nacional coloca em risco a vida de todos nós, especialmente a de nossas crianças. "Num Brasil tão polarizado precisamos, mais do que nunca, de nos posicionar e proteger as nossas infâncias, pois crianças são o único grupo da sociedade civil que não pode se defender das brutais decisões de alguns grupos políticos brasileiros."

A violência além das armas, que também fere

Deus, pátria e família é uma frase que precisa ser muito bem analisada. Se Deus é amor, então não pode haver violência nem armas. Se pátria é amor pelo nosso país, então devemos defender nossas crianças, nossas florestas. Um país onde há fome e onde queimam árvores criminosamente não ama sua pátria. E família? Família também é, ou deveria ser, amor.

Seja lá como ela for formada, com dois pais, duas mães, ex-casamentos, gente solteira. Até porque tá cheio de família por aí formada por homem e mulher casados em que a mãe sofre violência doméstica e os filhos sofrem abuso. Isso pode ser chamado de família?

O que esses adultos ensinam para seus filhos quando defendem armas? Quando só as mulheres levantam da mesa para lavar a louça? Quando xingam alguém por ser gay ou pelo tom de pele ou por ser nordestino? Ou quando um pai rejeita um filho trans ou trata mal pessoas pobres? Além de não ensinarem nada, deseducam e perpetuam uma sociedade doente.

Esta semana, minha filha estava indo de ônibus para a faculdade e tirou uma foto que me doeu o coração: uma criança bem pequena, brincando de boneca, dentro de uma barraca montada no canteiro central de uma grande avenida de São Paulo. Uma criança sem casa, sem escola, sem comida. Uma infância roubada. Até quando vamos assistir a todas estas formas de violência e o que faremos para isso acabar?