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Você aceitaria virar adubo depois de morto?
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No final de setembro, a Califórnia se juntou a outros quatro estados norte-americanos (Washington, Colorado, Vermont e Oregon) e legalizou o processo de compostagem humana. Na vanguarda do movimento pela morte verde ou pelos enterros sustentáveis, os Estados Unidos vêm vestindo a morte com trajes de sustentabilidade e abrindo a possibilidade para qualquer um que quiser —e puder pagar por isso— se transformar em adubo orgânico depois de morrer.
O processo consiste basicamente em colocar o corpo em uma espécie de caixão compostável juntamente com madeira, serragem, folhas secas e outros ingredientes naturais, e esperar o tempo fazer seu trabalho. "É um processo químico que ocorre envolvendo as estruturas do próprio corpo", explica Ivan Miziara, chefe do departamento de medicina legal da Faculdade de Medicina da USP e ex-diretor do IML (Instituto Médico Legal). "Em termos ambientais é bastante interessante."
Pensar no meio ambiente até depois de morto já é uma realidade para as pessoas que contratam esse serviço. De fato, morrer hoje em dia na nossa cultura não é algo sustentável: somente na cidade de São Paulo, 35.873 pessoas foram enterradas ou cremadas nos últimos seis meses (entre abril e setembro deste ano). É uma média de 196 pessoas por dia, de acordo com dados do Serviço Funerário da Prefeitura, que incluem cemitérios e crematórios municipais e particulares. Por ano, é como se toda a população de uma cidade considerada pequena pelo IBGE fosse parar debaixo da terra ou virasse cinzas.
"Os enterros dependem de enormes áreas nos cemitérios. Além disso, do jeito que são realizados, causam contaminação nos lençóis freáticos", explica Miziara. Fora o tempo que os caixões tradicionais levam para se decompor. "Já a cremação, a segunda maneira mais popular de se despedir de um corpo, emite gases que causam o efeito estufa", diz ele. Por isso, o ritual da morte também embarcou na onda verde. Se há embalagens, roupas e escovas de dente compostáveis, por que não você?
Nessa onda, o primeiro estado norte-americano a legalizar a compostagem humana foi Washington, onde a legislação entrou em vigor em 2020. Lá nasceram empresas como Recompose Life e Return Home, que oferecem o serviço com ar moderninho e estilo hipster. Com a legalização desse modelo nos outros estados, as companhias especializadas no serviço foram crescendo e ampliando o atendimento.
O processo inclui uma sala reservada para que os familiares e amigos possam se despedir —como em um velório tradicional, só que mais moderno— e todo o acompanhamento da compostagem até que o corpo se torne finalmente adubo. Dependendo da legislação vigente em cada estado, os familiares ainda podem, após o fim do processo, levar para casa o composto orgânico e adubar uma horta ou um canteiro. Algo parecido com as cinzas, após a cremação, só que mais nutritivo para as plantas. Em tempos de mães, pais e até "babás de plantas", profissão alcunhada pelos Santa Ceciliers, o adubo humano pode ser um prato cheio.
No entanto, para virar um composto nutritivo para a sua samambaia, é preciso desembolsar de US$ 5.000 a US$ 7.000 (algo entre R$ 26.485 e R$ 37.079 na cotação atual), valor compatível aos preços de uma cremação (US$ 6.000) e de um enterro em um caixão tradicional (US$ 7.200) nos Estados Unidos, de acordo com reportagem do "The Guardian".
Já no Brasil, se esse modelo for importado com os mesmos custos, estaria um tanto acima dos valores de um sepultamento tradicional. De acordo com a tabela de preços da Prefeitura de São Paulo, realizar um enterro com velório, caixão e flores pode variar de cerca de R$ 420 a até R$ 27 mil. Isso tudo sem contar o preço da concessão: o direito a um pedaço de terra em um cemitério municipal por tempo indeterminado custa entre R$ 7.665 e R$ 26.064, dependendo do local. Já a cremação, processo em que o corpo é colocado em uma espécie de forno a cerca de mil graus, é mais em conta: de R$ 204 a R$ 2.187, sem contar a urna para as cinzas.
Apesar de cara, a ideia da compostagem humana traz grandes vantagens sob o aspecto da sustentabilidade. Seu processo, ainda que dependa de uma certa expertise para ser realizado, não é algo recente para a humanidade. Ainda assim, sua aceitação não deve ocorrer de forma rápida, ao menos no Brasil. "A morte envolve aspectos culturais muito fortes para que tradições sejam repentinamente quebradas", diz Ivan Miziara. "Estamos lidando com sentimentos, tradições religiosas, culturais, sentimentais. Os rituais fazem parte da nossa memória afetiva."
Ele lembra, por outro lado, que quando surgiu a cremação, ela também não foi aceita de imediato. O primeiro crematório do país surgiu em São Paulo, na década de 1970, e hoje essa já é uma opção bastante popular com relação aos enterros tradicionais. "Mudanças culturais ocorrem com o passar do tempo."
E você, aceitaria virar adubo depois de morrer?
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