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Marina Rossi

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Passei 2 meses em um grupo de compra e venda de Cytotec: conto o que vi

No Brasil, o Cytotec é proibido desde 2005 - Divulgação
No Brasil, o Cytotec é proibido desde 2005 Imagem: Divulgação

Colunista de Universa

16/06/2023 04h00

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São sete horas da manhã de um sábado e Laura* saiu para trabalhar. Faz faxina em casas de família, cada dia em uma diferente. Neste sábado, porém, antes de sair de casa, ela colocou dois comprimidos de Cytotec sob a língua e inseriu outros dois na vagina. Com dois filhos pequenos, Laura ficou desesperada ao saber que estava grávida. Conseguiu o contato de uma pessoa que vende os comprimidos abortivos, fez o pedido, recebeu pelos Correios logo após realizar o pagamento e não perdeu mais tempo. Fez o procedimento no trabalho mesmo, porque não podia faltar. No grupo de WhatsApp no qual foi colocada pelo vendedor dos comprimidos, relatou sua experiência, agradeceu a ajuda recebida e saiu, com medo de o marido ler as mensagens.

"Bem-vinda ao grupo VIP". É assim que uma das vendedoras do comprimido chama no WhatsApp o grupo que reúne aproximadamente 200 mulheres. Todas chegam lá com o mesmo objetivo: interromper uma gravidez indesejada. Algumas, no entanto, estão inseguras quanto à efetividade do medicamento, cuja comercialização é proibida no Brasil desde 2005. Elas então são convidadas a participarem do grupo para que, lendo relatos como o de Laura, cuja identidade foi preservada, acreditem na idoneidade dos vendedores.

Passei dois meses neste grupo. Entrei fingindo ser uma possível cliente com medo e ali fiquei, sem dizer nada. No privado, os vendedores enviam uma tabela de preços dos comprimidos, cuja quantidade a ser usada depende do tempo de gravidez. Os valores partem de R$ 430,00 por quatro comprimidos e vão a até R$ 1.380 por 14 comprimidos, para quem está grávida de 17 a 18 semanas. "Demais valores: consulte", diz a mensagem, abrindo uma brecha para quem está com uma gestação mais avançada.

Mais do que um grupo de comercialização de uma substância ilegal, trata-se de um local de acolhimento para muitas mulheres que chegam nas mais diferentes situações. Uma entrou querendo comprar para a amante do noivo. A outra, o marido não sabia que ela estava grávida —e nem saberá. Uma delas foi para um hotel realizar o procedimento longe da família. Algumas aguardam ansiosamente pelo dia do pagamento para que, enfim, possam comprar o medicamento, que é mencionado sob o código de "vitamina". E muitas já foram vítimas de algum golpe ao tentarem comprar a substância com outros fornecedores —ou o medicamento não fez efeito, ou sequer foi enviado. Daí a desconfiança.

Além do medo de ser pega pelo marido, ou de cair em um golpe, quem faz um aborto clandestino teme pela própria vida. Como no Brasil o aborto só é permitido em casos de estupro, risco de morte para a mãe ou quando o feto é anencéfalo, qualquer outra razão para se interromper uma gestação é tratada na clandestinidade. Ou em clínicas particulares que cobram caro pelo serviço, ou com o uso de medicamentos, chás e toda a promessa de substâncias que posam ser abortivas.

Aí entra o Cytotec, cujo princípio ativo é o misoprostol, substância criada para o tratamento de dores no estômago. Na década de 80, as mulheres brasileiras descobriram que o remédio causa contrações uterinas como efeito colateral, e passaram a utilizá-lo para a interrupção de gestações, levando à proibição da sua comercialização. Segundo a Associação Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o único medicamento registrado no Brasil que tem misoprostol como princípio ativo é o Prosotokos. Por ser abortiva, a droga está classificada dentre as que têm controle especial. Seu uso é restrito aos hospitais e a venda é proibida no Brasil. Por se tratar de uma substância de uso controlado, o seu comércio de forma irregular pode ser considerado um crime equivalente ao tráfico de drogas, cuja pena é de cinco a 15 anos de reclusão.

Terapia

O uso do misoprostol em ambiente hospitalar ou sob orientação e acompanhamento profissional é uma das formas mais seguras de se realizar um aborto, segundo especialistas. "É uma substância que tem um ganho muito grande", afirma Rossana Pulcineli Vieira Francisco, professora associada da disciplina de Obstetrícia da Faculdade de Medicina da USP. "Não é usada só para o abortamento provocado, como também para a indução de parto de pessoas com tempo certo de gravidez, ou em situações de óbito fetal, e é muito segura para o uso hospitalar". É por isso que o misoprostol está inserido na Relação Nacional de Medicamentos Especiais, um instrumento utilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para atender às necessidades de saúde prioritárias da população.

No entanto, seu uso clandestino ou sem um acompanhamento profissional pode ser ineficaz e, em último caso, fatal. "É preciso saber se há alguma contraindicação para o uso em cada paciente. Existe, por exemplo, o risco de sangramento aumentado", explica Rossana. "E se houver alguma complicação, essa paciente precisa ter atendimento. Por isso, o uso sem acompanhamento profissional, sem um lugar de referência que ela possa procurar caso tenha uma complicação, é perigoso".

Segundo o Observatório Obstétrico Brasileiro (OOBr) sobre estatísticas de mortes maternas no Brasil, abastecido por dados oficiais do SUS, 51 mulheres morreram em decorrência de um aborto no Brasil em 2021. Rossana, que é uma das coordenadoras do Observatório, aponta que essa é a quarta causa de morte materna no país. A primeira é hipertensão, seguida de hemorragia e infecção puerperal. "Mas desconsiderando os anos de 2020 e 2021, que apresentaram um aumento na morte materna de maneira geral, devido à Covid-19, 2019 apresentou uma queda na quantidade de óbitos por aborto", afirma ela. Foram 43 mortes. Em 2018 e em 2017 foram registrados 68 óbitos por essa causa em cada ano.

Seja como for, o risco que todas essas mulheres correm ao comprar uma substância ilegal aponta para a urgência de um debate sobre a descriminalização do aborto no Brasil. Ao longo desses dois meses em que permaneci no grupo, li ao menos 15 relatos de mulheres que realizaram o procedimento com aqueles vendedores —-que não só enviam os comprimidos, como também dão "apoio" remoto ao longo do procedimento. Uma das vendedoras se diz "enfermeira e psicóloga". Por precaução, elas não revelam onde nem como têm acesso ao medicamento. Por outro lado, ninguém questiona. Os relatos das outras mulheres são a "garantia" do produto.

Quem está ali, está em busca de algum acolhimento e de interromper rapidamente uma gravidez indesejada. "Esse grupo me ajudou muito. Foi uma verdadeira terapia", escreveu uma delas. "Passei semanas só lendo os relatos das meninas, sabendo que a minha hora ia chegar. Mas me senti acolhida aqui. Não vejo a hora das minhas 'vitaminas' chegarem", escreveu uma delas.

O uso de códigos é uma das artimanhas que fazem lembrar que a substância é ilegal. "Já tem um ano que fiz o procedimento, mas não consigo deixar o grupo", escreveu uma delas. "Achava que não ia ter saída, principalmente porque caí em um golpe antes de chegar aqui. Ainda bem que consegui encontrar essas 'vitaminas'".