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'Quero ir para um asilo.' Como lidar com pedidos de quem tem demência
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Em janeiro de 2021, a bióloga Flávia Camargo de Oliveira, 43, começou a fazer uma rotina diária de exercícios de respiração com a mãe. O mundo estava mergulhado na pandemia de covid-19, as vacinas ainda não estavam disponíveis no Brasil e os reflexos de quase um ano de reclusão apareciam sob os mais diversos distúrbios psicológicos. Vivendo há mais de dez anos nos Estados Unidos e longe da família, Flávia e a mãe se conectavam por chamadas de vídeo, e, juntas, elas respiravam. Um dia, no entanto, a mãe não atendeu sua chamada. Ela enviou mensagens, mas não recebeu resposta. Passou o dia sem ter notícias. Até que o irmão, pelo celular da mãe, avisou que ela estava no hospital.
Flávia descreve a mãe como uma empresária que sempre foi muito independente. Nos últimos anos, ela conta que a relação das duas estava desgastada por desavenças políticas e por isso elas estavam afastadas. O exercício de respirar por videochamada era uma tentativa de reaproximação. No dia que não atendeu à chamada da filha, a mãe havia tido um AVC (acidente vascular cerebral). Assustada e pressionada pelo irmão, a bióloga comprou passagem, fez uma pequena mala com roupas para passar poucos dias e embarcou para o Brasil. "Eu vim praticamente com a roupa do corpo. Estava no meio do meu doutorado, achei que passaria uns dias aqui e voltaria para casa logo", diz.
Flávia nunca mais voltou para os Estados Unidos. Seus móveis, roupas e objetos pessoais estão até hoje em um porão em Santa Cruz, na Califórnia, onde vivia. Com o passar do tempo, o quadro de sua mãe só se agravou. Entre janeiro de 2021 e abril deste ano, ela teve mais outros dois AVCs. As sequelas a levaram a um declínio cognitivo irreversível e seu comportamento, assim como seus cuidados, foram ficando cada vez mais complexos. "Ela começou a ficar esquecida, falava uma coisa e no dia seguinte dizia que era mentira, que não havia dito", conta Flávia. "Depois, foi ficando agressiva com as pessoas que cuidavam dela. Até que começou a delirar, dizia que queria ir a um chaveiro para ter uma chave, sei lá para quê. Dizia que queria ir até o banco, ou achava que estava em um aeroporto. E, de repente, começou a me chamar de mãe. E isso para mim foi perturbador".
Sozinha, Flávia passou a cuidar da mãe em tempo integral. Mas a situação foi ficando insustentável. "Teve um dia em que ela estava fazendo muita confusão com uma conversa sobre questões bancárias. Eu mostrei a conversa que ela teve com a gerente para mostrar o que de fato ela havia dito", conta. "Ela olhou e disse 'meu Deus, olha a confusão que estou fazendo. Eu quero ir para um asilo. Mas no dia seguinte já não se lembrava de mais nada", conta.
Ainda assim, a filha deu um jeito de levar a mãe —contrariada— para uma casa de repouso. Chegando ao local, o psiquiatra perguntou se elas sabiam por que estavam ali. "Eu comecei a chorar e disse: estou aqui porque não dou mais conta", diz. Sem lucidez, a mãe fez alguma piada da qual ela não se lembra. No local explicaram que a situação era grave. "O médico disse que o quadro dela era 'ladeira abaixo'. Aquilo foi muito impactante, porque eu ainda achava que a minha mãe ia melhorar, eu a levava em duas neuropsicólogas diferentes, quatro vezes por semana. Eu acreditava que ela ia voltar a ter uma vida independente".
Escolher um lugar seguro onde a mãe pudesse descansar, e, ao mesmo tempo, ser bem cuidada foi só mais uma de uma série de decisões que a filha precisou tomar ao longo dos últimos anos. A mais recente foi enquanto a mãe estava intubada. "Os médicos me perguntaram se eu preferia fazer uma traqueostomia ou se eu preferia esperar. E nada era garantido", conta ela. "Como tomar uma decisão como essa?".
Segundo Sabrina Corrêa da Costa Ribeiro, médica intensivista com atuação em cuidados paliativos, decidir sobre questões como essas é uma "crueldade" com o cuidador. "Tem muito profissional de saúde que joga decisões médicas no colo dos familiares", diz. "E isso é assustador, porque eles não têm como tomar essas decisões". Mas além de não ter conhecimentos técnicos para tais decisões, há ainda um outro fator nessa conta complexa: como respeitar o desejo de alguém que não consegue mais manifestá-lo?
Testamento vital
Em 2012, o Conselho Federal de Medicina (CFM) regulamentou o testamento vital, um documento no qual é possível determinar os procedimentos médicos aos quais a pessoa deseja ou não ser submetida. Para isso, é preciso que a pessoa tenha mais de 18 anos, esteja lúcida e não tenha entrado ainda na fase crítica da doença —ou antes mesmo de ter alguma doença grave. Luciana Dadalto, advogada e pesquisadora especializada em testamento vital, explica que embora não exista nenhuma lei que regulamente esse testamento, de 2012 para cá já foram despachadas decisões de juízes que fizeram prevalecer a regulamentação do CFM.
Ela orienta que o documento seja registrado em cartório, embora isso não seja obrigatório. "E não precisa de um diagnóstico prévio, basta reconhecer a própria finitude". Além disso, é importante que a pessoa busque um médico de confiança que oriente a pessoa a tomar decisões sobre temas que ela não conhece, como, por exemplo, ser ou não submetida a uma traqueostomia, ou em quais condições aceitaria ser intubada. Por fim, é fundamental entregar o documento para alguém de confiança.
A médica Sabrina Corrêa explica, no entanto, que é possível respeitar os desejos do paciente mesmo quando ele não deixou um testamento vital. E ainda que ele não esteja mais lúcido. "O papel da família, mais do que representar o paciente, é ser a voz dele. São os familiares que vão contar quem é aquela pessoa para que a gente possa tomar as melhores decisões a partir dos valores dela", diz.
Para isso, há algumas pistas. "Às vezes, um filho diz 'meu pai sempre foi muito independente', ou 'minha mãe sempre quis morar sozinha'. Essas são informações valiosas para nos guiar", explica a médica. "O fato de um paciente não ter mais lucidez não significa que ele não deva ser escutado."
Ela reforça que é preciso entender os valores de cada paciente independentemente dos seus valores pessoais. "Às vezes, a gente olha para um paciente e acha que a situação dele não representa mais qualidade de vida. No entanto, essa é a nossa opinião", diz. "Para muitas pessoas, viver, mesmo em condições de dependência, é um valor. E isso precisa ser respeitado."
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