Pandemia afetou o mundo da moda e eu já vi 3 mudanças ótimas acontecerem
Escrever sobre moda num momento como o que estamos vivendo pode parecer algo fora de contexto. "Como assim você ousa falar ou mesmo pensar sobre roupas quando estamos vivendo uma crise de proporções globais?" —era o que martelava todo dia na minha cabeça nos primeiros meses em que coronavírus chegou ao Brasil e a gente precisou reavaliar vários pontos fundamentais como saúde, educação, moradia e empregos.
Só que aí eu lembrei do porquê, do motivo desse tema me despertar tanto interesse e do quanto fico decepcionada cada vez que ouço alguém dizer que moda é um tema fútil. Há muito tempo as vestimentas estão aí como elementos intrínsecos da cultura dos mais diversos povos, capazes de contextualizar hábitos, costumes, contexto social e econômico. As roupas possuem memória, fazem parte da formação de nossa identidade. E hoje, com todos os avanços tecnológicos, é super possível usar a moda para trabalhar em prol da saúde e de questões sociais.
Agora, falando de economia e trabalho, por exemplo, segundo um balanço do Programa de Internacionalização da Indústria Têxtil e de Moda Brasileira (Texbrasil), que desenvolve estratégias com empresas do setor para conquistar o mercado global, só em 2019 essa área empregou 1,5 milhão de pessoas diretamente e 8 milhões indiretamente, dos quais 75% são de mão de obra feminina. Esses números significam que a cadeia têxtil é o segundo maior empregador do país, ficando atrás apenas do setor alimentos e bebidas.
Justamente por ter toda essa potência, esse setor sofreu bastante os efeitos da pandemia. Todo ano, desde 2017, o site The Business of Fashion divulga uma pesquisa com a consultoria McKinsey pra tentar entender os rumos que a moda vai tomar ao longo do ano seguinte. O último report completo saiu em novembro do ano passado e lá já se falava muito sobre os impactos do coronavírus no setor. Só que, os impactos do isolamento social na moda foram tão sérios que foi preciso fazer um update da pesquisa em abril.
Recomendo a todos a leitura, tem mil pontos que são alertas vermelhos como a previsão de um abalo darwiniano em toda a cadeia: só quem pensar rápido, e se adaptar às mudanças trazidas pelo cenário atual de recessão, vai sobreviver. Mas a boa notícia é que as crises quase sempre são amigas da criatividade. Então, pra conseguir seguir adiante, muitas empresas estão repensando seus modelos de negócio e muitos consumidores estão bem alerta. Posso listar três movimentações boas que observei nos últimos meses:
O consumo está sendo repensado
Antes mesmo do corona ter dominado o mundo, algumas tendências de comportamento já eram bem visíveis no mercado. As pessoas buscavam marcas mais transparentes e sustentáveis e isso provavelmente fica ainda mais forte agora.
Ninguém está com muita grana para gastar em roupas e uma boa parte de quem consegue investir nisso agora pensa mil vezes antes de comprar uma peça.
As pessoas estão de verdade se perguntando: o que eu tenho no armário? Eu preciso de algo novo? E se eu comprar esse algo novo, vai durar? O curioso é que essas são perguntas básicas que nós, consultoras de estilo, propomos aos clientes, e agora eles estão indo por esse caminho voluntariamente (talvez nem tão voluntariamente assim, já que são levados pela crise, mas enfim?).
Novos valores estão se impondo
Outra coisa muito interessante que aparece no report do Business of Fashion é que existe agora uma grande oportunidade de se repensar toda a cadeia de valores da moda.
Por exemplo, os editoriais que revistas de moda têm feito durante a pandemia. Tem muita coisa linda sendo produzida de forma caseira.
Teve a Elle Brasil, que convidou 22 fotógrafos para registrar 22 marcas de moda brasileiras com seus familiares e parceiros de isolamento. Teve a capa de maio da Marie Claire México mostrando uma profissional de saúde, com o rosto marcado por horas de trabalho usando máscara e a frase The Real Influencers.
Teve ainda a enxurrada de críticas recebidas pela Vogue brasileira que no meio do caos da pandemia resolve publicar uma revista com Gisele Bundchen na capa, usando marcas inacessíveis e com a frase "Novo Normal" estampada. Tudo isso mostra que as pessoas não estão aceitando mais do mesmo.
Pretos no topo, enfim
Além de tudo isso, uma das coisas mais marcantes na moda pra mim nesses últimos meses foi a escolha da nova editora-chefe da Harper's Bazaar americana. Samira Nasr é a primeira mulher negra no cargo em mais de 150 anos de revista. O anúncio, que aconteceu em meio a todos os protestos do movimento Black Lives Matter, não poderia ter vindo em uma hora mais propícia.
Oportunismo ou não, o fato é que essa foi uma grande mudança para uma revista que, como muitos dos grandes títulos de moda, tem uma tradição elitista e excludente. Eu adorei ler uma entrevista com a Samira em que ela fala uma coisa que pode até parecer óbvia, mas que a gente acaba esquecendo muitas vezes: estilo vai muito além do jeito que a gente usa roupas, é a forma como ocupamos o espaço no mundo ao nosso redor. Isso, essa ocupação, é algo grandioso. É disso que eu falo quando digo que a gente precisa se apropriar do nosso estilo.
Depois de ler essa entrevista, eu realmente acho que pode acontecer uma mudança muito positiva na moda. Porque isso que eu falei antes, sobre a tal tradição elitista, leva as revistas a mostrarem sempre um modelo aspiracional impossível de se atingir, faz parte do sistema que a gente conhece hoje.
A moda corre atrás do próprio rabo desde sempre, é a nova "it" bolsa, é o vestido "must have", é a tendência não sei das quantas. E isso faz parte da própria identidade do sistema, só que a gente está vivendo um momento inédito, em que tem muita gente tentando repensar esse acordo.
Um momento em que marcas e consumidores de moda inteligentes, que pensam na cadeia inteira, estão indo não no sentido do privilégio social, mas no do progresso social.
A moda, que antes era um ambiente que exaltava privilégios e excluía automaticamente qualquer um que não estivesse de acordo com suas regras não declaradas, começa a dar sinais de que não tem mais espaço pra esse tipo de comportamento. Há enfim uma esperança das coisas serem um pouquinho diferentes.
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