Autor de série sobre violência doméstica da Netflix: É assunto de todos nós
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Em 2017, quando produtores da Netflix pediram a Raphael Montes o roteiro para uma série policial, o jovem e festejado autor do gênero não titubeou em sugerir a adaptação do livro "Bom dia, Verônica". A sugestão foi aceita.
Faltava apenas entrar em contato com a escritora Andrea Killmore para adquirir os direitos da obra. O caminho até ela foi o primeiro turning point do esperado thriller que estreou na semana passada na plataforma: Killmore, na verdade, era o pseudônimo do livro escrito a quatro mãos por Ilana Casoy e o próprio Raphael Montes, que se tornaria roteirista e produtor-executivo da série homônima.
O roteiro ampliou uma parceria iniciada em meados de 2016, quando o jovem escritor, então com 26 anos, conheceu a criminóloga e autora de livros sobre o casal Nardoni e a família Richthofen.
A transição do livro para as telas, porém, exigiu muita conversa, terapia e desapego. Foi o que contou o autor em conversa por telefone com a coluna na antevéspera da estreia na Netflix.
Fã de Agatha Christie, Fred Vargas, Karin Fossum e Patricia Highsmith, o escritor e roteirista tem uma tese de que os melhores romances policiais foram escritos por mulheres. Curiosamente, elas se consagraram com histórias protagonizadas por homens.
Montes tinha vontade de construir, desta vez, uma personagem feminina. Morador do Rio, fazia questão que a trama se passasse em São Paulo. E que fosse um suspense investigativo com um serial killer —especialidade de Ilana, que Montes leu pela primeira vez quando era adolescente. Ela sugeriu que a personagem principal, Verônica, fosse uma escrivã da polícia, interpretada na série por Tainá Müller. E que, além de combater criminosos misóginos, ela se deparasse com questões relacionadas a maternidade e a sobrecarga feminina.
E assim foi.
A história adaptada na série gira em torno das personagens femininas. Cada uma, a seu modo, esbarra em algum momento no machismo: a fraude de um golpista em um site de relacionamento, a violência doméstica, o paternalismo de um delegado que se apresenta como protetor e vive podando as pretensões de sua escrivã e as cobranças do marido por presença quando ela se entrega demais ao trabalho.
"Fomos discutindo, escrevemos um esqueleto da história, dos principais acontecimentos, em detalhes. A Ilana ficou responsável por fazer as primeiras versões. Escrevia, eu reescrevia e devolvia o capítulo para ela. E fizemos muitos encontros para discutir os rumos da história", diz o autor, que rejeita a "imagem clássica do autor ensimesmado que fica no castelo". "Tenho sede de diálogo."
Para Montes, lugar de fala é uma questão muito importante na construção da história, apesar dos riscos. "Havendo pesquisa, cuidado e diálogo com as pessoas envolvidas, o escritor pode vestir a pele de quem quiser. É parte do trabalho criativo você assumir lugares que às vezes não sejam seus. Desde que você esteja bem amparado", diz o autor de quatro romances protagonizados por personagens masculinos.
"Escrever junto com a Ilana foi uma oportunidade perfeita. A nossa troca e a vivência da Ilana trouxeram essa complexidade das personagens."
A complexidade se desenha já no primeiro capítulo, quando o policial militar interpretado por Eduardo Moscovis se apresenta como marido cuidadoso após a mulher, Janete (Camila Morgado), perder um bebê na gestação. "Você é a mulher da minha vida. Tenho certeza de que ainda vai me dar um filho", ele diz.
O relacionamento abusivo que ele tem com a mulher, apelidada de "passarinha", não demora a sair das entrelinhas da violência psicológica, a começar pela proibição do contato dela com outras mulheres, inclusive da família. "Os episódios de machismo e de violência doméstica são criados pelos homens. Se nós somos parte do problema, cabe a nós ser parte da solução. Este não é um assunto de mulheres. É de todos nós", diz o autor.
Um dos desafios do roteiro, segundo Montes, foi mostrar a dificuldade daquela mulher para sair da prisão em que vive com o marido. "Muitos dizem: 'mas era só ir embora'. A série propositadamente mostra todo o ciclo da violência doméstica, mesmo as mais sutis, que parecem elogios. A potência da narrativa é mostrar a vida como ela é. A violência pode ser física, psicológica. É sempre seguida de um pedido de desculpas, uma promessa de que não vai acontecer mais. Ou de que a culpa é da vítima, que tirou o agressor do sério."
A série trata também do sexismo velado na família da própria escrivã, que se depara com o bullying que a filha sofre por conta do peso, das cobranças do marido e das sabotagens de um delegado que a princípio diz querer protegê-la. "Tivemos que aprofundar alguns personagens. O delegado representa a polícia antiga, cansada, machista. Mas tem um lado humano, um lado paternal. Essas duas faces do personagem o tornam complexo. No livro, o personagem é bem mais odiável. Na série, ele ganhou carisma por causa da direção e, claro, atuação do Antônio Grassi."
Curiosidade: o nome do delegado, Carvana, foi pensado como uma homenagem a Hugo Carvana (1937-2014), que se notabilizou por personagens de histórias policiais como "Pedro Diabo Ama Rosa Meia-Noite", filme de 1969.
A série cumpre o objetivo de falar de violência em camadas, com todos os elementos de um thriller misturados entre o entretenimento e os alertas para a denúncia e a conscientização —isso em uma plataforma que, a exemplo das novelas nas décadas passadas, tem visibilizado e pautado debates no país. Ao fim de cada episódio, é divulgada uma campanha com o link para denunciar possíveis maus tratos.
Montes diz não ter pretensão de oferecer respostas, mas admite: "Torcemos para que a série impacte e salve algumas vidas."
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