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Matheus Pichonelli

Vocês teriam sido bons nazistas? Lições do livro "A Onda" para o século 21

Filme "A Onda" - Divulgação
Filme "A Onda" Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

26/10/2020 04h00

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Quem gosta de cinema vai se lembrar de quando "A Onda" entrou em cartaz por aqui em 2008. Dirigido por Dennis Gansel, o filme contava a história do experimento feito por um professor em uma escola da Alemanha para mostrar que o nazifascismo não foi derrotado num belo dia pelo bom senso dos cidadãos, e sim por uma guerra que derrotou uma organização política e ideológica cujo espírito ainda perambula por aí.

No filme, os alunos são induzidos a se filiar a um movimento denominado A Onda que começa prometendo recuperar a disciplina, a ordem e a coletividade e termina em fanatismo e violência contra todo mundo que não aceita a sua imposição. Sem perceber, os estudantes replicam os passos do autoritarismo que levou a Alemanha à guerra sob o comando de Adolf Hitler.

Semanas atrás, recebi da editora Galera, voltada para o público adolescente, o livro homônimo que inspirou o longa alemão —e também uma série que eu, pelo menos, não tinha conferido ainda na Netflix.

Além do fato de o livro ser lançado agora para o público em idade escolar, e que possivelmente faz as mesmas perguntas dos personagens da trama, me surpreendeu saber que a história, baseada em fatos reais, não aconteceu na Alemanha, e sim nos Estados Unidos do pós-guerra.

Não é um detalhe para quem vê a linha do perigo ser atravessada em tempos de depressão econômica e desespero social.

Na rica Califórnia de 1969, a experiência de inspiração nazista floresceu não do ressentimento dos derrotados na guerra nem das teses racistas de seu líder messiânico, mas do tédio e da dispersão. O livro conta como o lema "força através da disciplina, da comunidade e da ação" reverbera justamente em quem estava na sala de jantar ocupado apenas em nascer e morrer.

A experiência do professor de história Ben Ross começa após a exibição de um filme sobre os horrores dos campos de concentração.

Ao vídeo-aula os alunos reagem com desdém. Imaginam que tudo ficou no passado e que a sociedade evoluiu a ponto de jamais repetir a tragédia. A maioria se questiona apenas como um país inteiro assistiu inerte ao rolo compressor de uma minoria barulhenta e organizada contra grupos sociais perseguidos.

O professor, então, passa a estudar como Hitler seduziu a juventude alemã e começa a reproduzir o seu ensaio em sala de aula.

Seria realmente verdade que a tendência natural das pessoas é procurar um líder? Alguém para tomar a decisão por eles?

É o que ele se pergunta antes de chacoalhar a apatia da turma com um discurso rigoroso em defesa da disciplina e do senso de comunidade.

Os primeiros a abraçar a causa são justamente os que menos se destacavam na escola.

A onda, como foi batizado o movimento, logo ganhou corações e mentes entre os atletas que não ganhavam de ninguém e os que iam à escola apenas para dormir.

Aos poucos, a sensação de pertencer a um movimento dedicado a resgatar uma grandeza supostamente perdida na era da individualidade eleva o grau de comprometimento dos alunos com os deveres da escola. A ponto de deixar confuso o próprio professor, que passa a gostar da ideia de ser não só um líder, mas o responsável por dar sentido à vida daqueles jovens.

"A maioria está virando gente. Estão com a leitura em dia. É como se amassem estar preparados para a aula", diz o professor à companheira ao ver os primeiros resultados.

Ela, então, contesta: será que eles não estão apenas com medo de estarem despreparados? Será que eles gostam mesmo quando alguém toma a decisão por eles ou apenas não querem ter trabalho ou pensar por conta própria?

Até que a experiência começa a desandar. Relatos de brigas entre quem era a favor e contra o movimento começam a surgir. Um aluno judeu é espancado —algo que todos tentam minimizar dizendo que a agressão foi um ato isolado e não tinha nada a ver com os discípulos da Onda, que diziam querer apenas o bem da comunidade.

Era tarde.

Além da companheira, uma das poucas vozes dissonantes do movimento é uma estudante destacada chamada Laurie, responsável pelo jornalzinho da escola. Ela é uma das poucas a se sentir realmente mal com o documentário exibido pelo professor sobre o Holocausto. E, ao ver como os colegas aderiram facilmente ao movimento, começa a escrever sobre como os atos de violência estavam naturalizados e justificados por uma estranha causa maior.

Antes, ela ouve da mãe que a grandiosidade de um país é construída não por movimentos uniformes, mas pelas pessoas que não tiveram medo de agir como indivíduos. "Se você estudar o tipo de pessoa que entra para essas seitas, vai ver que elas são quase sempre infelizes consigo mesmas e com a vida que levam. Elas veem a seita como uma maneira de mudar, de recomeçar, de literalmente renascer."

A pequena jornalista que contestava as ordens dos colegas passa, então, a sofrer perseguição. É acusada de tentar rachar o movimento e, por isso, precisa ser silenciada.

Embasbacado com a facilidade com que todos aderiram às suas ordens, o professor não demora a concluir que os integrantes da seita teriam sido, sim, bons nazistas. Teriam vestido uniforme, virado o rosto e permitido que seus amigos e vizinhos fossem perseguidos e destruídos —para depois negar que sabiam o que acontecia ou classificar as agressões como "atos isolados"

Qualquer coincidência ou paralelo com movimentos e experiências políticas que reivindicam unanimidade e perseguem os corpos e ideias divergentes pode até ser coincidência. Ligar os pontos é trabalho do leitor.

O livro é lançado em boa hora. Os tempos são propícios para aprender com o passado e com as experiências que hoje flertam com o passado. Da leitura fica apenas o desejo de que alguém surja a qualquer momento dizendo que tudo o que estamos vendo, testemunhando, absorvendo e naturalizando não passou de uma experiência infeliz com o intuito de acender novos alertas.