Caça a músicas de Renato Russo levou polarização do país a outro patamar
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É como diz o ditado: se você não gosta de Legião Urbana quando jovem você não tem coração; se você ainda gosta depois de velho, você não tem cérebro.
Aos fãs da banda, peço um segundo da sua atenção antes de correrem para a caixa de comentários com ofensas e falsas equivalências do tipo "Vai pro show do Roger Moreira, palhaço".
Peço este momento de calma porque:
1- Não fui eu que inventei o ditado. Foi um amigo para quem, a exemplo de certas religiões, há bandas e intérpretes que são incríveis. O que estraga são os fãs. Não é o caso de Legião Urbana, ele diz. Neste caso nem a banda salva.
2- Sou do time dos que não se entregam sem lutar. Que têm ainda coração. E que veem nas letras profecias para os dias atuais.
3- Não falo com meu amigo desde que ele transformou o ranço em ditado.
Mas não era isso o que eu queria cantar nem escrever.
O que eu queria mesmo era protestar, sem qualquer pretensão melódica, contra a Operação Será, da Polícia Civil do Rio, realizada no começo da semana em busca de canções inéditas do líder da banda e autor da canção homônima, Renato Russo.
Caso o delegado da ação estiver me lendo, pergunto: o senhor não tem vergonha, seu delegado? O senhor não acha que já estamos machucados suficientemente pela polarização insana que atinge o campo político, o futebolístico e a treta sobre biscoito e bolacha? O senhor acha que o Brasil está realmente pronto e maduro para discutir música inédita do Renato Russo em plena era digital? Já pensou nas consequências que essas letras podem ter na cabeça cheia de Tik Toks do jovem centennial? E se as supostas músicas forem da fase "A Tempestade", álbum que coloca um(a) desafeto(a) na prateleira dos pesticidas, das tragédias radioativas e de doenças incuráveis? E se forem do tempo do "Que País é Este"? Você quer mesmo uma multidão com a camisa verde e amarela nas ruas bradando alguma obviedade do tipo "ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da nação"?
Ponha a mão na cabeça, seu delegado. Ou, se for do outro time, ponha a mão no coração.
Nas redes, o estrago dessa história já é imenso. E, não bastasse a polarização amo/odeio Legião, agora tem os subgrupos de discussões sobre quem está viajando nesta história: se o Giuliano Manfredini, filho do compositor que fez a denúncia, ou o Marcelo Fróes, advogado e pesquisador responsável por seus álbuns póstumos.
Uns chamaram Manfredini de bolsominion. Outros viram na operação uma criminalização indevida do gosto musical. Nem o Geddel Vieira Lima, ex-ministro e ex-colega de classe do Renato Russo, foi tão massacrado quando a polícia descobriu em seu cafofo R$ 51 milhões em espécie. O que é dinheiro perto da fissura de um fã de Legião por uma música inédita? Nem que seja uma palhinha de outro sucesso do Lionel Richie.
O balanço da operação é um país devastado. Amigos que já estavam começando a se falar depois de 2018 fecharam a cara de vez. Um se queixou pela problematização em torno da obra do maior compositor da história do país. Outro contestou a capacidade cognitiva de quem problematizava a problematização e foi devidamente bloqueado.
Teve, entre os fãs da banda, quem se lembrou que neste vespeiro era melhor não mexer. A última vez que encontraram algo inédito do Renato Russo saíram da caixa-preta as estrofes "tem gente que machuca os outros, tem gente que não sabe amar, tem gente enganando a gente, veja a nossa vida como está".
Pois veja que até para o fã convicto fica difícil defender. Como se já fosse fácil manter a coerência e sustentar que "olha o fogo do dragão" fazia sentido, sim.
A exemplo das apresentações da banda em Brasília, as investigações já descambam em sopapos. Fróes disse que nunca se apropriou indevidamente de obras de ninguém e que não existem músicas inéditas. Uma hipótese é que as 30 composições mostradas pela polícia como troféu sejam remixagens ou letras que estariam sendo musicadas por outros artistas. Os sedentos por música e justiça perguntam (sem a intenção do trocadilho): será?
Como desgraça pouca é bobagem, o Brasil, já suficientemente fragilizado em torno de questões menos incendiárias, como obrigatoriedade da vacina e o formato da Terra, agora se preocupa com o destino do possível material inédito, se houver.
Uns querem uma espécie de The Voice especial para encontrar o melhor intérprete e dar às supostas canções um desfecho digno. Outros defendem que é melhor dar logo as letras para o Andrea Bocelli. Outros querem dar a guarda para o cara da banda Catedral. Outros não podem ouvir o nome da banda genérica e prometem ir à guerra caso isso aconteça. Outros foram cancelados porque disseram que, se for parar pra pensar, o Wagner Moura é fãzaço dos caras, já fez shows, conhece o repertório, estudou os trejeitos e, bem, por que não?
A outra metade do país, os que não estão do lado do bem nem da luz nem dos anjos, fala apenas em incineração.
Quem achava que a polarização política estava rachando o país ao meio é porque nunca viu um quebra-pau em torno da maior banda brasileira que já existiu. Quem discorda é golpista.
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