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Matheus Pichonelli

Eduquem seus filhos. Eles podem ser o Rodrigo Constantino de amanhã

O polemista Rodrigo Constantino  - R7/Reprodução
O polemista Rodrigo Constantino Imagem: R7/Reprodução

Colunista do UOL

09/11/2020 04h00

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Rodrigo Constantino foi demitido dos veículos onde divulgava sua indigência após dizer que, se sua filha fosse estuprada ao assumir o risco de sair de casa e se embriagar, ela não só ficaria de castigo como seus agressores seriam preservados de qualquer denúncia.

O raciocínio deveria constar nas aulas de educação básica para meninos nas escolas. Poderia ser pregado nas paredes ao lado de outra pérola do mesmo autor: "Onde foram parar os machos?"

Abaixo, o alerta: "Eduquem seus filhos. Eles podem ser o Rodrigo Constantino de amanhã".

Assim como diante da fala do advogado de defesa de um homem acusado de estuprar Mari Ferrer, ninguém que conhece o tipo, desses que olham para Donald Trump e veem um modelo de virilidade, pode se dizer surpreso com o argumento do polemista profissional. Eles brotam por aí como praga.

Por esse raciocínio, mais comum do que se imagina, se uma mulher decidiu sair e beber, ela é responsável por assumir o risco —inclusive da violência que possa sofrer.

Com o homem, ocorre o contrário. Beber significa ficar fora de si. E, fora de si, ele não pode se responsabilizar pelos atos —inclusive da violência que pode produzir.

É uma conta que não fecha.

Aos meninos que me leem, pergunto: alguém já te convidou a abrir uma conta no banco no auge de uma bebedeira? Ou a sacar alguma quantia considerável do caixa eletrônico depois da quinta dose? Já te entregou a chave do carro quando sua língua enrolou pensando que agora, sim, você estaria apto a dirigir?

Não vale responder "meu pai me ensinou a não beber".

Em resumo: qual grande decisão da sua vida foi tomada sob estado alterado de embriaguez?

Poucas, não?

Então por que, quando o assunto é sexo, o que em qualquer campo é impedimento se transforma em estímulo, quase uma carta branca para destroçar a ideia de consentimento?

No país que registra um estupro a cada oito minutos, ensinar e discutir sexo, nas escolas, em casa, nos livros de referência é ainda sinônimo de "estímulo à sexualidade precoce".

Sob esse manto, permite-se que educação sexual seja uma disciplina autodidática.

Neste campo, o que acontece entre quatro paredes quase nunca é trazido à luz. É lá que as desigualdades de condições se ampliam. E a violência vem a reboque.

Um homem que bebeu demais, quando não apaga e dorme largado, incapaz de se mover, pode sempre dizer que "não sabia o que fazia" para justificar qualquer coisa que faça.

Com a uma mulher que bebe, ou que tenha sido criminosamente induzida a beber, ocorre o contrário. Se estava no local (digamos, uma balada), se sabia do risco, se estava a fim até resolver mudar de ideia, então a culpa é explícita.

"Estivesse em casa nada aconteceria", eles dizem, como se fosse possível ignorar os casos de violência contra crianças praticadas dentro dos quartos, com a roupa que for, por seus familiares.

Quando se sabota a educação sexual já na base, sabota-se um capítulo fundamental da formação humana. A que fala sobre consentimento. Está no índice das responsabilidades, das quais o homem foge como moleque ao ser confrontado com os fatos. "Eu bebi demais, não sabia o que fazia."

Ou, para buscar um exemplo recente: "Estou rindo porque não estou nem aí, a mulher estava completamente bêbada, nem sabe o que aconteceu".

Nos tempos em que toda nudez ainda é castigada, beber, para uma mulher, serve como um atestado consciente e a priori dos riscos.

Isso acontece porque ainda evitamos falar sobre o assunto como adultos, inclusive às portas da vida adulta. Permitimos assim que sexo seja ainda assunto proibido nas rodas das melhores famílias ou tratado sem a devida importância nos círculos mais, digamos, liberais. "Mas é só sexo". Não é. Nunca é.

Num caso como o outro, pela acusação do pecado ou da caretice, falar sobre sexo e tudo o que envolve o ato sexual é digno apenas de censura. Passamos, assim, parte da vida com noções precárias, ou mesmo tortas, sobre prevenção, gravidez, doenças sexualmente transmissíveis, desejos, corpos e responsabilidade afetiva. Tudo devidamente lacrado, tampado e encarcerado sob o selo: "Educo meus filhos a não saírem de casa".

Aqui, nós, homens, somos dispensados da conversa desde muito cedo. Do moleque que embebeda a namorada para manejar estados de consciência ao sexo sem camisinha sem que ela perceba, viramos pais lamentáveis que também justificam a violência pelo pêndulo da proibição ou do castigo.

A não ser, claro, quando o filho é homem. Quando ele entra na vida adulta, ele não pode falar das dúvidas e inseguranças, tratadas à base da masculinidade alimentada por pornografia barata que o coloca sempre no centro da cena, da disposição anatômica e das decisões —a não ser quando é acusado de ter cometido um crime sem o consentimento da vítima.

Aí todas as variações entram em campo para justificar o direito inalienável de ser moleque diante da vítima sem direito a defesa, ou com o direito de defesa cerceado pelo constrangimento.

O julgamento de Mariana Ferrer é emblemático porque agrega um pouco de cada um desses elementos. Ela, por se vestir, postar fotos no Instagram ou estar num lugar em que supostamente não deveria estar, não tem estatura moral para acusar ninguém. Em vez disso, deveria se envergonhar. Não é uma filha digna nem digna para se relacionar com os filhos do doutor pai de família.

Ele, o acusado, não sabia de nada. Nem da noção básica de consentimento. Porque é só um garoto, mesmo que esteja há tempos na vida adulta, e garotos não precisam responder se têm vergonha de ter feito o que fizeram, por se vestirem como se vestem, por postarem o que postam, por estarem onde estavam ou por supostamente não entenderem que a vítima estava em estado alterado após ser dopada de modo criminoso.

De quebra, vão ter sempre a solidariedade de gente como Constantino, que aproveita a exposição e o selo de "formador de opinião" para reclamar que hoje em dia não se pode mais separar mulheres decentes de "piranhas". Nem dizer que as feministas, as primeiras a gritarem contra a relação desigual escancarada em casos assim, são "tudo recalcada, ressentida e normalmente mocreia, vadia, odeia homem, odeia união estável, casamento... odeia tudo isso".

Tem sido assim desde Adão e Eva.