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Matheus Pichonelli

Obama, Dilma e a dificuldade de aceitar que novos grupos cheguem ao poder

Colunista do UOL

19/11/2020 04h00

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Em seu livro "Uma Terra Prometida", recém-publicado por aqui, Barack Obama relaciona a ascensão do populismo de direita nos EUA como uma resposta ao pânico criado pela chegada do primeiro presidente negro à Casa Branca.

Adversários do Partido Republicano, bilionários patrocinadores das causas conservadoras e até emissoras de TV fizeram do ressentimento um caldo que envenenaria a política no país em seu governo. Em resumo, as antigas forças hegemônicas se reorganizaram e deram o revide com Donald Trump e suas piscadelas aos grupos supremacistas. A reação veio justamente dos que confundem privilégios com direitos e direitos com privilégios.

O relato do ex-presidente norte-americano só não serve como alerta porque um movimento muito parecido já aconteceu por aqui após a eleição da primeira mulher à Presidência, em 2010. Mas serve como lembrete do que grupos hegemônicos são capazes de fazer quando se sentem ameaçados pela ascensão de grupos historicamente marginalizados ou afastados dos centros das decisões.

No último domingo (15), o Brasil voltou às urnas sem ainda se recuperar da ressaca que levou Jair Bolsonaro e seu grupo de meninos brigões ao Palácio do Planalto. As primeiras análises dos resultados apontam crescimento de mulheres e pessoas negras eleitas para as Câmaras e prefeituras municipais.

Diversas localidades observaram também, aqui e ali, a eleição de grupos de diversidade e de pessoas trans, casos de Erika Hilton (PSOL) e Thammy Miranda (PL), que conseguiram vagas para a Câmara de São Paulo. "É uma organização em resposta ao fascismo que o Bolsonaro e o bolsonarismo trouxeram ao Brasil", disse Erika após o resultado.

O avanço, é claro, não permite concluir que o Brasil virou o paraíso da diversidade de um dia para o outro. O próprio desempenho dos candidatos e partidos mais conservadores do campo político mostra quem são os grupos ainda dominantes em termos políticos. Mas o incômodo com a simples presença de minorias será certamente sentido —como sentiu Barack Obama ao longo de seu governo. Como sentiu Dilma Rousseff por aqui.

A presença de minorias em postos de comando incomoda porque quebra uma estrutura sobre a qual estão acomodadas as estacas da nossa formação política, social e afetiva.

Esse embate não começa nem termina em ano eleitoral. Da infância, nos anos 1990, posso lembrar como nosso prédio de classe média, construído em antigas áreas de fazenda do centro expandido da cidade, no interior paulista, ficava em polvorosa quando o vizinho negro, que morava numa das casas remanescentes de terra batida do quarteirão, aparecia para jogar bola, e de como pessoas como ele tinham o caráter sob ataque ao contestar o destino esperado para ele, e para nós, meninos brancos. Um projeto sobre quem serviria e quem seria servido num eventual encontro na vida adulta. Tudo isso se replica nos embates políticos.

Estamos em 2020 e não estamos perto de eleger uma pessoa negra para presidente*. Mas sabemos como uma mulher eleita presidente foi retratada dia sim, dia não, como uma pessoa amargurada, sem condições intelectuais, emocionais e mentais para governar. O retrato tinha sempre uma liderança fora de si ou a ponto de explodir. A pessoa mal-amada, como nos ensinaram desde crianças a nomear as mulheres que batalhavam e não estavam dispostas a nos receber em casa com doces e sorrisos ao fim do experiente.

Antes de Dilma Rousseff, diziam coisas parecidas sobre Luiza Erundina, Marta Suplicy, Benedita da Silva e outras lideranças que tiveram a ousadia de se apresentar em público com um figurino distinto daquele guardado para as primeiras-damas. Não à toa, até hoje escutam questionamentos sobre suas vidas privadas para colocar em dúvida suas competências e intenções na vida pública. O show de horrores em um debate da semana passada em Porto Alegre, que teve Manuela D'Ávila como alvo de um ex-namorado e também candidato a prefeito, é só a versão mais atualizada desse ressentimento.

De 2010 para cá, muita coisa mudou. Cada passo para frente foi seguido por alguns passos para trás. Ou mais. O deputado que ria de uma mulher torturada e fazia loas ao seu torturador hoje é o presidente da República. Um presidente que dá chilique toda vez que é contrariado —e que, nem por isso, leva alguém a questionar a capacidade de um homem, no geral, governar.

Há quem questione por que as sinalizações cada vez mais claras de despreparo não causam apreensão e revolta para além das redes. Talvez porque os marmanjos que não aceitavam serem contrariados por uma mulher no comando estejam agora pacificados.

Quando falam em "retorno da ordem" aparentam estar confortáveis numa casa planejada sob as estruturas de uma velha hierarquia, aquela que determina quem serve e quem é servido, quem sai para a luta e quem recebe os guerreiros com sorrisos, doçuras e perguntas sobre como foi nosso dia.

Nas eleições municipais, muitos e muitas que não aceitaram esse modelo de subserviência se candidataram a cargos eletivos com projetos mais conectados com a contemporaneidade, sem os puxadinhos, edículas e quarto dos fundos da estrutura anterior. As vitórias, sofridas e batalhadas desses novos modelos, pedem um alerta constante: vamos deixar que a capacidade desses grupos políticos que já mostraram força seja colocada em dúvida toda vez que precisarem se posicionar?

Identificar o que são críticas à gestão e o que são ataques tomados pelo racismo, pela misoginia e (agora) pela transfobia de quem foi criado para mandar e não ser mandado é só começo da nova história.

*Diferentemente do que escrevi anteriormente, o Brasil já teve, sim, um presidente negro, mas eleito como vice. Foi Nilo Peçanha, que assumiu o cargo após a morte de Afonso Pena. Desde a nova república, porém, pessoas brancas tem dominado tanto a lista de candidatos como de eleitos no país