Ter filhos ou não? Filme da Netflix subverte clichês da maior das decisões
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Recém-adicionado ao catálogo da Netflix, "Quando a Vida Acontece" é um drama austríaco indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro que acompanha a viagem à Itália de um casal em crise tentando se reconectar. Até aí, nada de especial. Já vimos esse filme muitas vezes.
Durante boa parte da história, parece que nada acontece nem no caminho nem na chegada dos personagens a uma pousada da Sardenha, onde pretendem desopilar à base de vinhos, peixes, deques, mergulhos, vistas para o mar. E sexo, claro.
Só que os planos começam a virar vinagre quando eles se deparam no quarto com uma cama extra, para criança, com um bilhete e um ursinho. O casal não tem filhos.
Já no início do filme descobrimos que a dificuldade para engravidar está no centro da crise conjugal e da aparente falta de sentido da vida a dois, marcada por conversas pueris, pouco empolgantes e uma conexão entre eles mais rala que sinal de 4G em casa de praia.
Em busca de um sentido que os conecte, Alice e Niklas transformam qualquer decisão, como sobre o menu do jantar, em uma questão de vida e morte. Alice passa boa parte da viagem estressada ao celular e com um laptop montado, a ponto de um vizinho de chalé perguntar como ela consegue trabalhar tanto na viagem. Descobre, então, que a preocupação, na verdade, é decorrente do contato diário com os engenheiros de uma reforma em sua casa.
Para sorte ou azar do casal, a presença da figura infantil ronda como sombra a viagem de férias. Está na cama extra e também na balbúrdia dos vizinhos de parede, onde um casal jovem, bonito e aparentemente bem-sucedido vive às turras com os filhos, um jovem de 13 anos de cara amarrada e que não sai do celular e uma menina, com seus cinco, seis anos, que perambula pelo espaço sem o olhar vigilante dos pais em busca de atenção. Como quem também procura alguma coisa que não tem, a menina cola na "vizinha", querendo a todo instante tirar dela alguma coisa, como um doce e os óculos escuros.
Detalhe é que os únicos diálogos com alguma profundidade entre os personagens, daqueles que não se resumem a posses, carreiras, obras e menus para o jantar, ocorrem sempre entre adultos e crianças. Cabe à garotinha perguntar a Alice o que ninguém tem coragem de perguntar: por que você está sempre triste?
É ela que pergunta também, ao surrupiar seus óculos, qual é a graça de enxergar um mundo escurecido. (O desespero inicial da mulher adulta diante da possibilidade de a criança quebrar seus óculos ou desorganizar o seu ambiente ajuda a entender o porquê).
Não demora para Alice e Niklas desenvolverem um sentimento entre a aversão, o carinho e a inveja da grama dos vizinhos de hospedagem. A ideia da viagem, afinal, era justamente parar um pouco de pensar na vida que querem ter e os corpos não permitem, e não lembrar disso o tempo todo.
A fronteira entre as duas estadias é tênue, com uma cerca natural tomada por furos onde eles se observam com o olhar de quem parece cobiçar o que falta, ou o que sobra, do lado de lá. Cobiçam ao mesmo tempo que esnobam.
O pai da família se queixa o tempo todo da falta de tempo, que parece sobrar ao outro lado como sobram páginas de um livro levado a tiracolo e que não prende a atenção do homem sem filho —que em tese teria todo tempo do mundo na viagem.
Não é o único elemento simbólico daquele espelho de dois modelos de família. Em uma das cenas, o pai quebra a cabeça para encaixar a bicicleta da filha em um porta-malas abarrotado onde não cabe mais nada. Agressivo, ele fecha a porta com irritação enquanto se queixa do fato de o filho ter tudo e não estar nunca satisfeito com nada. Em outra cena, humilha a mulher na frente dos novos amigos. Após os filhos, o único projeto que ela aparentemente conseguiu concluir foi um curso de astrologia, e isso vira motivo de chacota aos outros integrantes da mesa.
Dali em diante, fica difícil entender por que os distribuidores brasileiros do filme não traduziram o título para "O que queremos", como na versão em língua inglesa. "Quando a vida acontece" sugere uma falsa promessa de história mamão-com-açúcar e lição edificante ao final.
Por aqui, talvez a melhor tradução para um título fosse "O que não queremos". As legendas seriam autoexplicativas.
Um dos grandes incômodos de Alice e Niklas é ter de responder o tempo todo que não, não têm filhos, que não, não sabem quando virão e, definitivamente, não, não tem a ver com querer ou não —em uma das cenas, o paredão de perguntas leva Alice a sair da defensiva dizendo que "filho dá muito gasto". A certa altura aqueles pais que ainda não foram gestados parecem visualizar a figura dos filhos como uma das estantes que estão montando para a casa nova, com catálogos de opções e negociações sobre preço do material e mão-de-obra.
Se, como o casal da história, o espectador busca ali algum veneno anti monotonia e sentido para a própria vida, melhor procurar outra pousada. Ou outro filme. À medida que conhecem melhor o casal de aparente plenitude, o casal "frustrado" percebe que ambos têm mais coisas em comum do que sugere aquela casa espalhada por brinquedos. Como o porta-malas, tudo ali parece sobrar. Menos a conexão entre eles, o que explica a comunicação precária entre marido e mulher, pais e filhos, filhos e pais.
Aquele jovem emburrado não é só um jovem aborrecido —ou aborrecente, como chamamos na minha terra. É um jovem em profunda crise existencial que ninguém, nem o paizão aparentemente capaz de garantir sustento e segurança à prole (ironia, tá?), consegue perceber ou responder além de uma cobrança indevida: "na sua idade eu já blablabá".
Como num jogo de espelhos, os casais se observam e tentam imaginar como seriam suas vidas se não tivessem tomado, em algum momento da juventude, a maior das decisões: ter filhos ou não.
Em um caso, a chegada adiada, e provavelmente inviável, de uma criança é aguardada como um bote-salva-vidas de uma relação que naufraga. No outro, é o bote que levou para longe do que se espera da vida a dois e furou em alto-mar.
Se alguém esperava que as crianças, em si, dariam sentido às figuras do marido e da mulher-padrão desenhadas na trama, se enganou. É o que fica claro quando tiramos a visão turva de óculos escuros e outros penduricalhos que os adultos usam o tempo todo para não parar, pensar e enxergar as coisas com a devida claridade: a falência de uma relação.
"Quando a Vida Acontece" —por que não "O Que Queremos", meu Deus?— é antes de tudo um filme sobre a crise dos relacionamentos. Uma crise que tem no desejo individual um impulso e ao mesmo tempo uma âncora que nos impede de criar conexão com um detalhe chamado "outro", um ser igualmente constituído por subjetividade e desejos próprios.
Com a idade que for, esse outro que olhamos ao espelho é sempre a negação de um projeto anterior. É também a subtração de nós mesmos, o que gera todo o mal-estar e a frustração permanente de quem caminha em direção a complementos, "caras metades", etc.
De tudo, a casa de paredes sólidas que aquele casal tenta planejar de longe é a única estrutura que pode ser erguida sem arranhão caso alguém, no caso os engenheiros do projeto, interpretem e entendam os seus desejos. Todo o resto é líquido, volátil e escorregadio, como as ondas captadas à exaustão pela diretora Ulrike Kofler.
Desculpem o spoiler, mas filhos não são a boia. São o mar. E não vêm com garantia de plenitude.
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