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Juntas há 16 anos, elas contam como foi lidar com a transição de gênero

O casal Ligia e Fabris, juntas há 16 anos  - Reprodução/Instagram
O casal Ligia e Fabris, juntas há 16 anos Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

25/12/2020 04h00

Juntas há 16 anos, Fabris e Ligia vivem uma grande história de amor. E tudo começou por acaso, numa comunidade do extinto Orkut que reunia moradores do Distrito Federal.

"A Ligia tomou a iniciativa e puxou conversa comigo. Nos tornamos amigas e passávamos horas conversando por telefone. Sempre tinha assunto pra tudo, não importava o momento. E foi assim por mais de um ano. Nessas coincidências da vida, comecei a trabalhar numa agência de comunicação que ficava a 50 metros da casa dela", recorda a designer e podcaster Fabris Martins, 41.

"Achava que eu era crossdresser"

Foram dois anos de amizade até que a relação evoluiu para o namoro e depois para o casamento, que aconteceu em 2009. Na época, Fabris acreditava ser crossdresser -quando homens se vestem com roupas femininas. "Eu achava que era um fetiche, não tinha noção de minha transgeneridade. Mas sempre fui aberta com a Lila sobre o tema, nunca escondi dela", conta a designer.

"Sempre fui diferente. Meu primeiro beijo aconteceu aos 19. Não entendia onde a masculinidade me cabia. Aos 5, eu vestia escondida roupas da minha irmã", revela Fabris, que se percebeu trans há dois anos.

Transição aos 39 anos

"É muito doido se perceber trans depois de certa idade. As perspectivas são poucas; os medos, muitos. As mudanças físicas são mais limitadas. Eu, por exemplo, sou quase careca. O cabelo começou a crescer depois de começar a TH (terapia hormonal)", conta.

Trans - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
"Essa foto é de 2017. Foi a primeira vez que me produzi e maquiei por completo. A minha expressão de plenitude representa o que senti naquele momento"
Imagem: Reprodução/Instagram

No Twitter, onde tem 3.600 seguidores, Fabris escreve sobre seu processo de transição. Além do microblog, expõe opiniões e perspectivas sobre a transgeneridade como colunista do "Olhares Podcast".

Plural, a produtora de conteúdo também traz análises sobre Star Trek no podcast "Frequências Abertas", fala sobre livros escritos por mulheres no podcast "Leia como uma Garota", e apresenta convicções afiadas sobre o Vasco da Gama em um canal no YouTube, o "Rosalinas".

"Quando me assumi trans, passei a produzir conteúdo"

À frente de tantas mídias, é difícil acreditar que durante a maior parte da vida Fabris se considerava uma pessoa retraída - característica que se transformou radicalmente quando ela entendeu quem, de fato, era. "É engraçado porque eu sempre fui muito tímida. A partir do momento que me assumi enquanto pessoa trans, passei a participar e produzir conteúdo."

E é exatamente nessa parte que a história de Fabris e Ligia tem uma surpreendente reviravolta: antes de se assumir uma mulher trans em 2018, Fabris foi surpreendida por Ligia com uma novidade - a bissexualidade da esposa.

"Em 2015 me descobri bissexual. Tive um crush platônico numa amiga. E a Fabris disse que se eu quisesse explorar a minha recém-descoberta sexualidade tava tudo bem. Ela falou que poderia abrir o relacionamento só pra mim, mas eu não achava justo e tinha muito ciúme dela", entrega a servidora pública Ligia Lila, 40.

"Eu sempre fui mais de boa que ela. E não via problema dela explorar esse lado, mesmo que eu não tivesse a mesma oportunidade", explica Fabris.

Até então, Fabris e Ligia nunca tinham conversado sobre a possibilidade de abrir o relacionamento. Entre Ligia e a amiga virtual, aliás, acabou não acontecendo nada, mas o diálogo franco do casal fez com que um tempo depois Fabris se sentisse à vontade para falar sobre sua transição: "Veio maturando em mim o desejo de me assumir, até que em 2018 contei pra ela".

Ligia diz que foi mais difícil aceitar a própria orientação sexual, a bissexualidade, do que lidar com a transição de Fabris. "Eu achava que eu era hétero, depois me lembrei que tive uma amiga na adolescência que eu quis beijar. Esse tipo de lembrança a gente apaga, sei lá por quê."

Trans2 -  Reprodução/Instagram -  Reprodução/Instagram
"Não apenas eu sou notada, chamo atenção. Uma mulher trans de 1,85m chega chegando. Minha esposa é baixinha, tem 1,55m. Segundo ela, sou a perua da relação", diverte-se Fabris
Imagem: Reprodução/Instagram

"A vida não muda somente pra mim"

"Nesse processo, a vida não muda somente pra mim. No meu caso, minha esposa passou a ter um relacionamento homossexual. Isso não muda nada no nosso status interno, mas pra outras pessoas, que são estritamente hétero ou homo, fico imaginando como é complicado. Algumas amigas trans se separaram exatamente porque a companheira não se via numa relação assim", conta Fabris, que se define como pansexual.

Em sintonia, Fabris e Lígia dão dicas para que outros casais que vivenciam histórias semelhantes dialoguem. "Hoje eu digo que sexualidade é fluida. Se você vê a sexualidade como algo rígido, estanque, então acho difícil a relação se manter. Tem que ter muita cumplicidade, companheirismo", opina Ligia.

E Fabris recomenda: "Não temam viver sua verdade. Precisamos ser visibilizadas, mostrar que somos reais. Relações podem ser variáveis. Não pode se achar que uma mulher trans quer viver uma relação com um homem. Somos guiadas por sentimentos, não por normas", pontua.