Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
'É apavorante a ideia homofóbica de que lésbica só serve pra tampar buraco'
"Acho que eu tô passando pela primeira experiência depois de muito tempo de sair com o cara e ser incrível, ele falar muitas coisas e hoje estar todo frio e calculista. Depois a gente vira sapatão e vocês não sabem por quê."
Dias atrás li essa postagem no Twitter e foi um soco no estômago, um gatilho.
Lembrei de uma entrevista que a atriz Cláudia Gimenez deu para a "Folha" em 2011. O título era "Cláudia Jimenez: 'Achava que não tinha cacife para seduzir um homem. Me joguei nas mulheres'".
Na entrevista, a atriz, que manteve um relacionamento de quase uma década com outra mulher, declarou que era "ex-gay". Cláudia afirmou: "Não tinha sensualidade, era muito mais gorda do que sou hoje. Não tinha forma e nem vaidade. Achava que não tinha cacife para seduzir um homem. Como tinha de ser amada, me joguei nas mulheres.". Foi uma fala tão insensível e chocante que eu nunca esqueci. Me doeu.
À época, a atriz foi criticada por gordofobia e homofobia. Não sei se hoje ela pensa diferente. Mas ver que essa ideia se perpetua, a de que mulheres lésbicas existem para tampar buracos de relações ruins com homens, é apavorante.
Heterossexualidade compulsória
Crescer em uma sociedade heteronormativa fez com que eu me sentisse deslocada em fases que deveriam ser as melhores da minha vida, como a infância e a adolescência. Mais tarde isso me empurrou para relacionamentos e situações absurdas.
Aos 16 anos, cheguei a me esconder embaixo da cama quando um namoradinho foi à casa da minha avó me buscar pra sair. Tive uma atitude tão ridícula quanto desesperada. Eu já entendia que gostava de garotas, mas me forçava a sair com rapazes porque era o que a família e a sociedade esperavam de mim.
O ideal de felicidade amplamente difundido por instituições religiosas, filmes, novelas e peças publicitárias era: "Encontre um par do sexo oposto, case-se e seja feliz para sempre — ou então seja uma pecadora sáfica e prepare-se para passar a eternidade ardendo no fogo do inferno.".
Eu tinha 13 anos quando anunciaram que haveria um casal lésbico em uma novela das oito da Globo, "Torre de Babel". Seria um marco de representatividade numa época em que sequer sonhávamos com smartphones, redes sociais e acesso fácil a todo tipo de conteúdo.
Mas lá, em 1998, o par romântico interpretado por Christiane Torloni e Silvia Pfeifer sofreu uma rejeição tão forte que em poucos capítulos deram fim às personagens. Na trama, elas morrem na explosão de um shopping.
Inferno e céu
Acho que o inferno é aqui. O céu também. E pode acontecer de a gente ter que passar por um até acessar o outro.
Poucas coisas me rasgam mais o peito do que estar completamente apaixonada e ter que omitir o relacionamento por medo. Dependendo do horário e do trajeto, até hoje fico travada em táxis e carros de transporte por aplicativo e evito gestos simples como ficar de mãos dadas ou dar um selinho por temer uma reação violenta do motorista.
E esse é só um detalhe no meio de um mar de outros na vida de mulheres que se relacionam com mulheres.
Já pensei centenas de vezes em como seria se eu não tivesse nascido lésbica. Porque, sim, nasci assim. Como nasci com os olhos castanhos. E sim, eu poderia escolher lentes coloridas e passar cada um dos meus dias tirando e colocando lentes azuis, mas isso seria para os outros. A gente passa pouco tempo se olhando no espelho.
Eu também poderia sucumbir à heterossexualidade compulsória e me casar com um cara. E aí nunca teria medo de andar de mãos dadas ou de beijá-lo num táxi. Eu também não teria vontade, porque não haveria paixão. Eu tentei.
É impossível "virar" hétero. Assim como ninguém se "transforma" em sapatão. A gente é o que é e pode aceitar isso ou escolher um outro caminho. A gente só não pode invalidar as vivências que são diferentes das nossas.
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