Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
A vida depois do ciclone: ventos de 90km/h atingiram minha cidade
Na semana passada, um ciclone atingiu a minha cidade. Eu vivo em uma ilha de 50 mil habitantes no norte de Santa Catarina, São Francisco do Sul. Minha casa fica a menos de cem metros da praia. Por volta das sete da manhã, acordei com o barulho do temporal. O vento uivava por entre os fios dos postes enquanto uma chuva grossa esmurrava a janela do meu quarto.
Há quase três anos aqui, enfrentei algumas tempestades, mas essa foi, de longe, a mais assombrosa delas.
No horizonte, à minha esquerda, mar e céu se confundiam num cinza esbranquiçado e revolto. Do lado oposto, alguns toldos, telhas e tampas de caixa d´água voavam longe.
A maré subiu muito, como vi poucas vezes antes. Engoliria os quiosques na faixa de areia? Subiria a rua? Levaria os carros?
Os comércios abriram. A lojinha de roupas, a de itens de praia, o posto de gasolina, o supermercado. Fiz um café bem forte e tentei fingir costume.
Há pouca gente na rua, menos que o normal. As escolas cancelaram as aulas. Será que a academia de ginástica está funcionando? Costumo ir à tarde. A internet não caiu ainda. Opa! A música parou no meio. Onze da manhã. Ficamos sem energia.
Por eventos climáticos bem mais amenos, já passamos quase 24 horas sem energia elétrica por aqui. O dono da sorveteria vizinha teve um prejuízo imenso. Quando aconteceu, acho que há um ano, li um livro em uma sentada. Devorei o "Fim", da Fernanda Torres. Mas lá, naquele dia, era um poste que tinha caído - e não um ciclone que estava passando. Agora, não tinha a menor possibilidade de eu conseguir me concentrar numa leitura. Meu sinal de celular, mesmo fraco, resistia.
A prefeitura avisou, pelo Instagram, que houve o rompimento de um cabo de energia numa região de difícil acesso. Informou, ainda, que estava registrando muitos destelhamentos e quedas de árvores, causados pelos ventos de até 90km/h. A Defesa Civil recebeu mais de cem chamados.
Moro no segundo andar e senti um pequeno tremor no prédio umas quatro vezes. Aconteceu, de fato, ou era o meu medo me pregando peças?
A estimativa era de que a energia seria restabelecida às cinco da tarde. As horas se arrastavam.
De repente, a tempestade arrefeceu. Eram duas e meia. O ciclone já foi? Segundo os meteorologistas, a passagem aconteceria até às 23:59.
Será que a academia estava aberta? Será que as pessoas vão, mesmo em dias assim? Estava entediada e queria ir. Querer ir é estranho? Ligo lá e ninguém atende. Me sinto meio desconectada da realidade pensando nisso. Quem abre a academia no meio de um ciclone? E quem é que tem cabeça pra malhar com o mundo desabando?! Eu não devo estar no pleno juízo das minhas faculdades mentais, não.
Às cinco a energia volta, e eu tomo um banho quente. Não chove mais e tudo está calmo. Há placas retorcidas e estragos notáveis por toda a ilha, mas nenhuma vítima grave, felizmente.
Pego a estrada pra buscar a minha namorada na cidade vizinha. Há bem menos trânsito que em dias comuns, acredito que pelo cancelamento das aulas. Na volta, queríamos um lanche e quase nenhum restaurante estava aberto. A luz não tinha voltado a todos os bairros ainda. O mais famoso, cheio de bares na orla, estava um breu, e tomado por um silêncio absoluto que só foi interrompido pelos nossos comentários embasbacados dentro do carro. "Tão escuro que daria pra andar pelada na rua se a gente quisesse", brincamos, sobre a possibilidade absurda numa das principais avenidas daqui. Não quisemos, estava muito frio.
O dia seguinte amanheceu lindo, com um solzão pleno, como se dissesse "Ciclone? Nunca nem vi", e a cidade retomou seu ritmo habitualmente tranquilo, como se nada tivesse acontecido. Fui pra academia e lá descobri que, sim, durante a passagem do ciclone ela ficou aberta até às duas da tarde. Há quem abra a academia no meio de uma intempérie. E há quem tenha cabeça pra malhar com o mundo desabando. De certa forma, figuradamente, é o que temos feito nesses tempos, né? Só não nos damos conta disso.
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