Aos 17 anos, ela é consultora de diversidade: "a inovação vem da periferia"
Ela nasceu no Grajaú, no fundão do fundão da periferia de São Paulo. Aos 2 anos, começou a ser alfabetizada pela mãe em casa, virou bolsista de excelentes colégios particulares na infância e, aos 13, criou um projeto de diversidade "porque já estava exausta de ser sempre a única menina negra nos espaços de classe alta e média". Isabelle Christina, hoje, aos 17, é presidente do Meninas Negras, que está prestes a se formalizar como ONG e movimenta uma rede de profissionais voluntários comprometidos com o desenvolvimento acadêmico, psicológico e cultural de jovens (meninos também) das periferias da cidade. "Agora vamos abrir a iniciativa para para estudantes que vivem em abrigos, sem família. Todos precisam sonhar, e sonhar alto, porque a sociedade inteira precisa da nossa sabedoria e experiência", conta a garota, que faz faculdade de Engenharia da Computação e é analista negócios na área de diversidade e inclusão na multinacional Oracle.
O Meninas Negras prosperou enquanto Isabelle Christina fazia cursinho para disputar, com 11 mil candidatos, uma das 22 vagas gratuitas do prestigiado Colégio Bandeirantes, com mensalidades que beiram os R$ 6 mil por mês. "Lá ficou explícito que eu vivia, simultaneamente, em 'bolhas' incomunicáveis que refletem a absurda desigualdade brasileira. Isso tem mudar, e na minha geração e em parceria com os tomadores de decisões", afirma a garota, ciente de que toda a sociedade, empresas e governos devem estar envolvidos nos processos de inclusão social. "Não pode ser uma missão extraordinária de um ou outro como eu. Inclusão é para todo mundo. E as instituições e empresas precisam ser treinadas também, devem mudar muito mais do que seus processos seletivos, é preciso transformar toda uma cultura, um mindset."
Isabelle explica que ela e sua mãe, Regiane Cruz, se muniram de muita cara de pau e coragem para cavar oportunidades. "Foi assim que a tive a chance de estar em lugares onde sequer imaginei", menciona a jovem que realizou o sonho de fazer intercâmbio nos Estados Unidos, participou de conferências na ONU, a Organização das Nações Unidas, e é consultora no programa "1 milhão de oportunidades", plataforma de geração de oportunidades de formação e trabalho do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância). Assista, abaixo, sua apresentação:
Nessa entrevista, ela fala sobre o papel das instituições e empresas nos programas de diversidade, sobre os microaspectos do dia a dia que fazem toda a diferença durante a vivência de pessoas incluídas e dá dicas para periféricos que, como ela, não devem nunca desistir de sonhar.
Mulherias: O que move você?
Isabelle Christina: O futuro dos jovens da periferia. Estamos passando pela quarta revolução industrial, onde a inovação tecnológica está aumentando os níveis de produtividade, mas não está promovendo o crescimento econômico sustentável. O mercado está em um modelo de alta qualificação e alta remuneração de um lado e do outro com baixa qualificação e baixa remuneração. Pessoas sem acesso a educação adequada, qualificação e oportunidades estão sendo excluídas. Eu me pergunto: como será o futuro se os jovens da periferia, os profissionais do futuro, nem sabem disso? Preparar pessoas como protagonistas, prontas para se reinventarem e causarem mudanças positivas na sociedade é o que me motiva todo dia.
M: Você tem 17 anos e um sonho gigante. Como surgiu tamanho desafio?
I: Minha mãe sabia que a única maneira de eu transformar minha realidade seria por meio de educação de qualidade. Tive conquistas desde muito cedo e comecei a notar um padrão: eu era sempre exceção, sempre a única menina negra, a única menina periférica, e isso começou a me incomodar. Aos 13 anos, no meu primeiro intercâmbio, de novo eu era a única mas dessa vez eu fiquei indignada, percebi que tinham pessoas que haviam partido de realidades difíceis como a minha mas cultivavam sonhos imensos. Me senti negligente, mas isso me motivou a fazer alguma coisa.
M: Como foi o primeiro passo?
I: Começou com a ideia de um blog de empoderamento mas achei pouco impactante. Depois de um ano refletindo sobre minhas oportunidades e também dificuldades de inserção, coloquei tudo no papel em planos de ações e nasceu o Meninas Negras com a missão de fazer com que garotas como eu pudessem criar as próprias chances e, a partir disso, se desenvolver para realizar seus sonhos.
M: E a primeira ação?
I: Nossa primeira atividade, com um grupo de 10 meninas, foi ir a um evento de uma empresa de tecnologia. Falamos com as pessoas, com as empresas, daí começamos a articular voluntários, criar propostas focando no desenvolvimento pessoal de cada uma do grupo, criamos planos de carreira, de ações, de direcionamento para cursos em busca de capacitação profissional. Pedimos bolsas de estudos, de tudo... E assim foi. Na maioria das vezes, o contato é online mesmo com pessoas e instituições que podem nos ajudar. Uma conexão leva à outra também. Eu sou extremamente cara de pau, aprendi com minha mãe a ser persistente também. Ela já passou dias intermináveis em escolas por mim, buscando bolsa de estudo. Não é para ser desse jeito, a sociedade precisa mudar! Mas enquanto não muda nós vamos, pelo menos, mostrar que é absurdo existir lugares onde não há negros e periféricos.
M: Quais são os resultados do Meninas Negras?
I: Coisas incríveis aconteceram. Meninas que chegaram no projeto em situação de analfabetismo funcional hoje trabalham em grandes empresas de tecnologia, viajam representando marcas. Temos casos de garotas que começaram com a gente no Grajaú e hoje fazem MBA em Nova York ou têm bolsa nos dos melhores colégios particulares da cidade. Em três anos já são mais de 100 impactados diretamente, 18 contratações excelentes, cinco bolsas ótimas e mais de 90 jovens ativos no programa que só cresce.
M: Por que focar em meninas negras?
I: A gente foi recebendo mais pessoas e demandas, como a inclusão de meninos e, agora, jovens que estão em abrigos. Mas focamos em meninas negras porque ao impactá-las nos preparamos para tudo e transformamos a sociedade. A ideia é encarar todas as particularidades para que elas sejam tratadas e desenvolvidas, e que elas consigam, de fato, ser mulheres líderes, protagonistas das próprias vidas e realmente cidadãs do mundo.
M: Como é feito esse trabalho?
I: Usamos ferramentas que ressaltam o potencial que elas já têm e nem sabem, habilidades que desenvolvem e não são reconhecidas para catalisar tudo isso que já têm e transformar em capacitação e treinamento pra que isso se converta em oportunidades na vida. A intenção não é só acesso a um primeiro emprego mas mostrar os passos para que eles consigam crescer na oportunidade a que tiveram acesso. E as empresas precisam estar nesse processo.
M: O que as empresas precisam aprender?
I: É preciso entender que o jovem negro que chega ali deve cresçer! Ele precisa ter ferramentas para se desenvolver, espaço para ser quem é e se destacar pelo o que traz de novidade àquele ambiente para, realmente, atingir cargos de liderança e de decisão. O potencial da periferia é muito grande pra gente se restringir a uma realidade ou pensar pequeno. Se uma empresa quer inovação e tem proposta de transformação, precisa compreender que isso só vai acontecer se esses jovens tiverem autonomia, liberdade para manter sua autenticidade e chances para criar o próprio caminho. Um primeiro emprego qualquer não basta. Do jeito que está hoje, eu posso demorar 49 anos pra receber o mesmo que um homem branco recebe aqui no Brasil! Não estou a fim de esperar, a gente precisa acelerar esse ritmo da mudança.
M: Ao transitar em cenários tão diferentes de onde veio, o que mais te impressionou?
I: A desigualdade. Uma coisa é a gente ver a notícia no jornal, outra é vivenciar realidades tão distantes. A primeira vez que eu me senti deslocada socialmente foi quando me descobri negra. Eu tinha quatro anos de idade e a minha mãe me levou no teatro pela primeira vez. Antes da peça infantil começar, reparei que todas as mulheres negras estavam vestidas de branco. Só eu e minha mãe, não. E então ela me explicou que elas eram as babás das outras crianças que tinham ido assistir a peça. Foi um choque mas nas escolas onde fui bolsista isso foi se repetindo à exaustão em cargos de faxineira, tia da cozinha. No caso de homens negros, como seguranças. Nunca tive uma professora negra.
M: Como você se sente diante disso?
I: Um ponto fora da curva. Eu vinha de outra realidade, muitas vezes saindo de casa 2h30 antes da aula, mas tinha que ter o mesmo desempenho de quem tinha acordado havia 20 minutos e ido a pé para a escola. E há muitas outras diferenças. O jeito que a elite fala, anda e se relaciona é diferente do jeito em que as pessoas do beco onde eu morava falavam, andavam e se relacionavam. Isso era todo dia. Eu, literalmente abaixo da linha da pobreza, iria encontrar pessoas com poder aquisitivo elevadíssimo. No caminho pra os bairros nobres eu já começava ver os padrões mudando. Tentei entender onde eu me encaixava, mas percebi aquelas pessoas que não faziam a mínima ideia de como era a minha realidade e eu também não sabia nada da deles. São extremos da desigualdade. Essa conclusão foi um choque porque eu achava que todo mundo sabia o que as pessoas passavam na periferia. Mas na verdade não é assim. Tive colegas de escola que me perguntavam: "como é ser pobre?" e eu assumi um papel educacional nesses momentos, sendo didática.
M: E isso se reflete no mercado de trabalho...
I: Sim, essa falta de convivência, de integração, essas bolhas são reproduzidas. Por isso, quando a gente fala de programa de diversidade e inclusão precisa lembrar que o aprendizado deve ser uma via dupla, ou seja, da mesma forma que eu preciso ser incluída naquele contexto, a pessoa do outro lado da mesa também precisa ser incluída no meu contexto. Só assim podemos ter empatia e possibilitar conversas em que a gente se entenda.
M: O que deve ser exatamente um programa de inclusão e diversidade?
I: Não é só um programa, mas uma cultura que se precisa criar. Um treinamento não vai fazer diferença. Não adianta uma empresa dar oportunidade pra uma menina negra da periferia se primeiro a gente não der recursos para ela desenvolver o seu potencial completo. As instituições precisam ter a consciência de que essa garota precisa de ferramentas. E os funcionários também devem estar prontos para recebê-la. Um exemplo: ao convidar a garota incluída para almoçar os colegas pensaram se o valor do vale-refeição vai dar para pagar toda a conta? Ela pode não poder gastar mais que a cota do dia.
M: É preciso ser inclusivo também nos detalhes, nas pequenas ações.
I: Sim. E as empresas precisam mudar o "mindset", o pensamento delas em relação a geração de oportunidades. Eu ainda vejo muitas empresas que acham que estão fazendo caridade em programas de inclusão. A base da força de trabalho, principalmente de jovens aprendizes, em sua maioria é formada por pessoas negras. Em estágios também. Só que a empresa começa a selecionar os melhores alunos das melhores universidades, exige inglês fluente e, aí, é óbvio que não terá pessoas negras nos melhores postos. Os negros seguem na base. Nas gerências, esse número cai ainda mais, quanto mais sobe na hierarquia, menos pessoas negras e periféricas estão representadas.
M: Qual sua sugestão?
I: Na periferia, começa-se a trabalhar cedo. Com 13, 14 anos meninas e meninos já estão ajudando em casa. Por que não investir nessas pessoas logo no começo? Mas não é só dar uma vaga, a empresa e o Estado precisam entender que aquela chance pode ser um projeto de vida para a pessoa. E ai a sociedade toda é convidada a exercitar a empatia e pensar em como dar as condições para que aquela pessoa consiga colocar seu projeto em prática. Isso deveria ser o normal. E outra coisa: uma mudança assim não muda a vida só da pessoa, mas muitas vezes de toda a família. Digo isso para ressaltar a importância de as empresas entenderem que têm, sim, responsabilidade social. Mas esse termo não se refere a uma ação pontual, paliativa. É preciso trabalhar a cultura interna da empresa em todos os setores. Hoje, diversidade é demanda dos clientes e de toda sociedade também. Mas não é só isso. Diversidade gera inovação. E a inovação vai vir da periferia, do mundo que os grandes gestores não conhecem nem imaginam mas precisam atingir para gerar dinheiro para as empresas.
M: Que tipo de dificuldade a pessoa da periferia encontra nesse processo?
I: É muito comum acontecer um auto boicote, o que se chama de Síndrome do Impostor. Falo por mim, como menina negra da periferia. Mesmo consciente de que vivo numa sociedade desigual, eu ainda me pego me subestimando, me sabotando em diversas situações. Isso acontece com pessoas periféricas porque a gente tem a sensação de ser menos, dentro de algum padrão existe. Quando a gente sabe que essa tendência existe já é um passo para evitar cair. Mas, infelizmente, na periferia a gente tem a cultura de passar pelas coisas no dia a dia e não olhar muito pra si, pras próprias dores. A autoestima é uma coisa difícil de se desenvolver e é importante ter uma rede de apoio com pessoas que entendam o que a gente está passando, sabe? É difícil, mas importante a gente sempre se afirmar, porque uma hora essa autoafirmação vai virar realidade. Insisto, então, que precisamos sonhar grande, muito grande mesmo e seguir no plano de chegar lá.
M: Qual o seu sonho, então?
I: Ser a primeira mulher negra brasileira laureada com o prêmio Nobel da Paz. Em uma viagem, em visita à ONU, tive contato com pessoas que alcançaram isso e que estavam lá pra mostrar que eles são pessoas como a gente, como eu e que é muito importante a gente se engajar para criar um mundo melhor agora, hoje mesmo. É ousado? Claro que sim. Mas eu nunca poderia imaginar que estaria lá naquele lugar naquele dia e ainda não sei onde vou chegar. Sonhar, então, me impulsiona a desenvolver as habilidades para isso. É uma meta maravilhosa, né?
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