Feminista, mãe periférica e companheira de Boulos: quem é Natalia Szermeta
Natalia Szermeta está com as unhas descascadas. O esmalte vermelho quase vinho não seria notado se ela própria não chamasse atenção para isso, depois de uma hora e meia de entrevista, na última quarta-feira (25). Ao ser perguntada sobre um momento que é só dela, olhou para as mãos. "Ah, tem. Às vezes vou num salão perto de casa, do bairro. É raro, mas faço a unha." Mas logo se emenda: "Se bem que, na boa, o que eu gosto mesmo é de tomar um vinho e escutar uma música depois de um dia cansativo."
Natalia é a companheira do candidato à Prefeitura de São Paulo Guilherme Boulos (PSOL). Ele disputa no próximo domingo um concorrido segundo turno com o atual prefeito Bruno Covas (PSDB) e, na ordem de preferências de Natalia, muita coisa vem antes da cor do esmalte.
Aos 32 anos, feminista, moradora da periferia de São Paulo, mãe de duas meninas, Natalia conta que até ficou mais vaidosa de uns tempos para cá, "mas não é minha prioridade". Desde a adolescência na militância de movimentos sociais, hoje é coordenadora estadual e nacional do MTST (Movimento de Trabalhadores Sem Teto), entidade de luta por moradia que congrega 68 mil famílias em 13 estados. É missão casca dura.
Entre suas atribuições, por exemplo, está a organização interna das ocupações e o acompanhamento dos processos de autogestão das famílias, muitas vezes instaladas precariamente em barracos de lona e bambu em terrenos abandonados pelo poder público. Lugares sem água ou saneamento básico e que precisam de toda uma logística para ser estruturado.
Natalia se orgulha de dizer que o MTST é feminino. "As mulheres são maioria. A luta pela moradia é muito mais do que propriedade para a gente. É uma questão de sobrevivência própria e dos nossos filhos."
Como explicou em uma entrevista de 2018, quando Boulos disputou a eleição vencida pelo presidente Jair Bolsonaro, seria uma primeira-dama pé no barro no Palácio do Planalto. Hoje, diante da possibilidade de ocupar o papel na capital paulista, afirma que mantém a mesma linha. "Honestamente, vivo um dia de cada vez e sigo assim, sendo uma pessoa simples que tem compromisso com a transformação social", diz a militante que, como boa virginiana, gostar de organizar listas de afazeres e objetivos.
Ela ainda não sabe se vai dar tempo de passar na manicure até o domingo de eleição. "O que as pessoas podem esperar de mim é que vou continuar minha trajetória, esteja onde estiver, sendo uma defensora das mulheres, como sempre fui."
Leia a seguir trechos da conversa em que ela fala das origens indígena e polonesa de sua família, das rotinas em sua casa e do que mais gosta no plano de governo:
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MULHERIAS: Você acompanhou a candidatura de Boulos à Presidência em 2018 [quando ele disputou o pleito que elegeu Jair Bolsonaro]. A eleição para a Prefeitura de São Paulo tem sido mais tensa?
NATALIA: Sim, mais tensa porém, ao mesmo tempo, mais prazeirosa. Eleição municipal tem essa característica também, né? É mais intensa.
Como foram esses dois anos de governo Bolsonaro para você?
Difíceis. Mas para o movimento social, pelo menos o MTST, nunca houve tempos de bonança. Tudo foi construído com enfrentamento, com mobilização. E esse governo [federal] nos dá muitas lições também. Mostrou que a história não é linear, que as derrotas não são para sempre, assim como as vitórias. Nos força a ter um olhar do Brasil mais Brasil mesmo.
Como assim?
O governo Bolsonaro nos obriga a entender as contradições do país. E mostra que a gente não tem que olhar os momentos da história como esse como perdidos, de desilusão. Nada está determinado. Não é porque Bolsonaro ganhou que estamos condenados ao fundo do poço. A campanha do Guilherme [Boulos], aliás, soube mostrar que as coisas não são pra sempre. A gente vive em uma sociedade democrática e oposição faz parte desse sistema. Ter divergência, ter grupo opositor, está dentro do marco democrático e é preciso dialogar.
Se Boulos vencer essa eleição, vai ter que lidar com isso.
Sim, é muito importante existir oposição dentro dos marcos democráticos e que tenha a legitimidade na sua pauta. Mas falo de oposição que faz sentido. Agora, o que não dá para tolerar é boicote. Porque, aí, não é oposição, né?
Você se refere a algo específico?
Boicote é o que aconteceu com a [ex-prefeita e vice de Boulos na disputa, Luiza] Erundina quando enfrentou a máfia do lixo e as empresas que prestavam serviço para a prefeitura [1989-1992] interromperam o serviço de coleta. É quando a elite utiliza do seu poder econômico para fazer chantagem com um governo. Isso não está nos marcos democráticos. Mas oposição é legítima na democracia.
E do que você mais gosta do projeto de governo?
Da proposta de participação popular, de construção com escuta que leva em consideração o respeito à experiência das pessoas que moram e vivem os problemas reais das comunidades. A minha vivência na periferia mostra que intervir sem entender qual é necessidade concreta da população é um grande erro dos governos. Conheci um lugar onde, por exemplo, cimentaram a beira de córrego e colocaram uma academia. Mas criançada brinca o dia inteiro ali porque precisava, mesmo, é de um parquinho.
Em algum momento você participou da elaboração do programa de governo?
Sim. Ressaltei a importância de considerar mulheres em situação de violência nos critérios de vulnerabilidade e assim ter prioridade no atendimento habitacional.
E como é na sua casa? É você quem faz a compra de mercado? Sabe o preço dos produtos?
Olha, eu detesto fazer mercado porque quando vou, passo o dia nisso, quero olhar todas as prateleiras, comparo preços e acabo querendo buscar em outros lugares mais baratos [risos].
Tem divisões em casa e mercado tem sido tarefa do Guilherme. Ele gosta de fazer as compras com as crianças. Eu faço a lista e ele resolve.
Sua casa, aliás, virou parte da campanha. Até as brincadeiras de suas filhas sobre a imitação do Adnet viraram vídeo.
Sim e eu acho engraçado. Talvez as pessoas mais críticas não percebam, mas a política não pode ser o espaço do rancor, da vingança, da cara amarrada. Isso não cabe mais para o que a gente está vivendo. É possível ser bem-humorado sem deixar de falar o que precisa ser falado e sem perder a seriedade do que é sério. A inovação da política precisa vir na forma de se chegar às pessoas. Política é assunto importante pra todo mundo; pra juventude, pra dona de casa, pro skatista, pro favelado.
E esse papel de primeira-dama? Quem será você nele?
Olha só, honestamente, eu tenho vivido um dia de cada vez. Primeiro, me preparei para chegar ao segundo turno. Agora estou trabalhando para ganhar a eleição. Então, o que posso responder é tenho princípios e vou seguir sendo uma pessoa simples, que mora na periferia, que é mãe, feminista, coordenadora do MTST. Estão nos meus planos concluir meu curso de Direito e exercer minha profissão. Uma coisa de cada vez.
Qual a história das mulheres da sua família?
Minha mãe é indígena e conta que minha bisavó foi capturada no laço em Minas Gerais. A minha avó não conheci mas sei que teve muitos filhos, paria de cócoras. Ela casou com meu avô que era católico, muito cristão. Ele fazia serviços para a igreja, e conseguiu uma vaga numa escola católica para mulheres para uma das filhas, a minha mãe.
Lá, ela sofreu por ser indígena e pobre. Chegou a passar fome, pegar lápis para escrever no lixo e não ter sapato para ir à escola. Em São Paulo, foi operária e fez parte de comissão de greve grávida do meu irmão. Se o movimento operário de hoje ainda é machista, imagina na época da minha mãe? Mas ela é um exemplo de vida. Saiu da fábrica para ser assistente de Desenvolvimento Infantil, a "tia da creche" e com mais de 40 anos resolveu fazer faculdade de matemática, que é o que ela mais ama.
E da parte do seu pai, que é polonês?
Minha avó paterna é da Ucrânia. Na guerra, foi levada a um campo de concentração na Polônia. Mas não era um campo de extermínio e, nesse local, ela foi enfermeira. Ela se chama Anastasia e conheceu meu avô nesse lugar. Ele tinha sido pego muito jovem, analfabeto, plantador de batata. Os dois, eslavos, tiveram o meu pai lá, nascido na véspera dos russos chegarem. A família veio para o Brasil. Primeiro ficaram no Rio de Janeiro, depois vieram pra São Paulo e se instalaram em Osasco, em uma coloniazinha de poloneses na Vila Iara.
E os homens da família?
Meu pai foi operário, eletricista, se envolveu com o movimento das greves ainda na ditadura. Foi pego quando o regime [militar] endureceu e ficou dois anos preso, foi torturado. E meu pai não tinha grandes formações, era só um operário! Mas nunca perdeu a esperança no povo. É meu exemplo de trabalho de base.
Em que contexto você nasceu?
Somos três irmãos e sou a caçula. Minha irmã é do primeiro relacionamento da minha mãe e temos 15 anos de diferença. Meu irmão tem seis a mais que eu e cresceu numa fase de muita dificuldade da família, com meus pais enfrentando o desemprego e despejos. Eu cheguei em época de maior estabilidade, quando eles já tinham comprado um terreninho no Campo Limpo. Quando nasci, eram três cômodos construídos: quarto, cozinha e banheiro. Não tinha sala. É foi aquela coisa: aos poucos meus pais foram erguendo um cômodo por vez. E até hoje moram lá, há mais de 40 anos. Meu pai usa o SUS, nunca teve carro, é socialista e segue militante.
Ele tem orgulho da filha no movimento social e na política?
Acho que hoje tem, sim, mas sempre fica preocupado. Depois que me tornei mãe, entendi melhor. Meu pai sempre falava, "estuda, termina o estudo. Uma hora eu não vou mais estar aqui". Hoje estou quase terminando o curso de Direito e estou feliz com minha vida. Não fui a pessoa que mora na periferia e sonha em morar no centro, nunca tive o sonho de ser uma mulher rica, sabe?
E seus sogros?
São pessoas muito humanas e importantes pra mim. Eles são dois médicos infectologistas que trabalharam no SUS e sempre trataram de pandemias e casos de saúde envolvidos com questões sociais. E eles tiveram muita sabedoria, paciência e respeito pelas opções do Guilherme.
Mas Imagino que ele não consiga estar todos os domingos lá no almoço de família.
É, não consegue. Mas a gente sempre está junto nas celebrações. Meus sogros têm seis netos, é uma escadinha. É maravilhoso passar o Natal lá. Eu que venho de família pequena adoro aquele monte em festa. Vai ser difícil esse fim de ano.
Quando você conheceu o Guilherme, sentiu que ele teve que fazer um deslocamento social para estar com você?
Não... Nossa, eu tinha 17 anos e ele 22, 23. Era menininho, magrinho, não tinha barba. Mas quando conheci o Guilherme ele já morava na periferia e já tava no movimento. Esse processo maior de ruptura não vi. A gente só se envolveu amorosamente depois de uns 4, 5 anos. Antes, eu convivi com ele como uma militante do movimento, com um grau de distanciamento normal.
E o movimento era um espaço machista? A visibilidade do feminismo de lá para cá mudou alguma coisa?
Olha, o movimento tem mulheres em sua maioria, até nas lideranças. Mas quando eu comecei a militar, lá pelos anos 2000, não se falava em feminismo. O máximo que se falava era sobre aborto, de uma forma equivocada, para bater nas feministas. Então, mulheres da minha geração também fomos aprendendo com o tempo. Ainda que a gente questionasse, brigasse pelo espaço, a gente não entendia muito bem o que era o feminismo. Vejo muitos avanços. É claro que há dificuldades, mas hoje você tem muito mais condições de dizer que não é não.
Seu marido é um homem branco, hétero, nascido na classe média. Ele sabe ouvir?
Sim. O Guilherme abriu mão de muito conforto que a maior parte da população brasileira não tem. Na medida em que ele faz isso, eu acho que não é de se esperar outra coisa se não uma pessoa que está disposta a ouvir e a aprender. Ele fala que aprendeu muito mais com pessoas com menos instruções, analfabetas, do que na academia.
Nas horas vagas, o que vocês fazem juntos?
A gente assiste muito a séries. Nas últimas semanas não conseguimos, mas a gente estava assistindo esse novo do [Fabio] Porchat [Que história é essa, Porchat?]. Coisa pra dar risada, né? E a gente gostou muito de assistir Coisa Mais Linda, As Telefonistas, La Casa de Papel. Temos esse pacto de assistir juntos. Se assistir separado, aí é briga [risos].
Se for primeira-dama acha que vai ser criticada ou ser colocada como um "adendo" do marido?
Essa questão de primeira-dama, né? Eu sou do povo. Eu vim do povo e não vou abandonar isso. Entendo que a minha tarefa é também ser exemplo para outras mulheres. Não quero ser exemplo de submissão, não quero ser exemplo de alguém que está à sombra. Sempre construí o meu lugar, estar e ser companheira do Guilherme nunca foi elevador para mim.
Quem escolheu as camisas novas para os debates?
Ah, tem uma galera que está cuidando da imagem. Eu sou virginiana, sei que gosto de controle sobre as coisas. Mas eu já entendi que o Guilherme é uma pessoa coletiva, uma figura muito ampla. A gente tem nossos momentos de intimidade, mas muitas coisas não sou eu que decido. Tenho outras coisas para fazer também, né?
Suas filhas negociam com o pai o uso do celular, horários?
Ih, na minha casa é tudo na base na negociação. O Guilherme sofre bastante pra negociar, porque somos em três mulheres [risos]. Em geral a gente ganha, né?
Como vai ser seu domingo?
Independentemente do resultado, eu estou contente, mas eu acho que a gente tem chance de ganhar. Temos boas expectativas para domingo. Espero que a gente tenha a oportunidade de governar essa cidade, e que eu possa ser um exemplo pras mulheres, de que a gente pode casar e ser parceira de homens importantes, sem deixar de ser importante também.
Tem algum momento que é só seu?
Ah, tem. Às vezes eu vou num salão perto de casa, do bairro. É raro, mas faço a unha. Se bem que, na boa, o que eu gosto mesmo é de tomar um vinho, escutar uma música, depois de um dia cansativo! Se cuidar é um conceito amplo, a gente tem que estar feliz, contente com a gente mesma. Minhas vaidades são poucas, acho que com a idade eu fiquei mais vaidosa, mas não é minha prioridade.
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