Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
'Como eu, mulher branca, percebi que sou engrenagem do racismo do Brasil'
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Uma mulher pede uma água de coco a um rapaz que está, como ela, encostado em um carrinho na Avenida Paulista. O rapaz sorri, constrangido, e diz que não é o vendedor. Não é difícil imaginar a cor de cada uma dessas pessoas: o rapaz é negro; a mulher, branca. Difícil, triste e vergonhoso é admitir: essa mulher sou eu.
Não consigo esquecer o episódio que escancarou as engrenagens do racismo operando dentro e através de mim, que nasci branca, estudei em escolas em que não havia um único aluno negro, me formei em uma faculdade de medicina pública numa época anterior às cotas, quando, nas seis turmas com mais de cem alunos, só havia dois negros — um deles, intercambista. Tento, desde então, entender aquele momento na Paulista, eco mais que de gritos, de silêncios anteriores, e a leitura de O Pacto da Branquitude, de Cida Bento, recém-lançado pela Companhia das Letras, direciona meus olhos — brancos — para os lugares mais difíceis de enxergar, que são paradoxalmente os mais disseminados.
Sim: ser branco no Brasil é e sempre foi, por si, um lugar de privilégio cotidianamente sustentado pela exploração de pessoas negras e pelo apagamento do próprio branco como cor, no que Bento nomeia como pacto de cumplicidade não verbalizado.
Todos os brancos somos signatários silenciosos desse pacto simplesmente porque desfrutamos, queiramos ou não, dos privilégios que dele advêm. Diz Cida Bento, doutora em psicologia e uma das cinquenta pessoas mais influentes do mundo no campo da diversidade segundo a The Economist: "fala-se muito na herança de escravidão e nos seus impactos negativos para as populações negras, mas quase nunca se fala na herança escravocrata e nos seus impactos positivos para as pessoas brancas."
O imaginário brasileiro se assenta em um esquema opressivo e seletivo de voz e silêncio, e também a história de nosso país que até hoje foi majoritariamente contada. Minha formação em psiquiatria não escapa a essa regra: só anos depois de concluída a residência ouvi pela primeira vez o nome de Frantz Fanon, psiquiatra que destacou a especificidade do sofrimento causado pelo racismo e que não consta nos currículos de ensino de saúde mental.
Foi ele, aliás, que me mostrou a comodidade de meu discurso pacifista: é fácil me posicionar contra a violência se as estruturas me defendem; há violências que apenas rebatem outras já instituídas, mas invisíveis, de tão perpetuadas.
Porque há palavras, como as minhas para aquele rapaz, que funcionam como tapas, reproduzem injustiças e as cristalizam, num país em que, nos traz Bento, a população negra trabalha duas horas a mais do que a branca e em que as mulheres negras trabalham quase o dobro do tempo para obter o salário de um homem branco.
Essas estatísticas também aparecem na clínica psiquiátrica cotidiana: uma paciente formada em engenharia eletrônica e da computação me contou, por exemplo, que por um bom tempo só foi contratada quando o processo seletivo se baseou em provas técnicas, mais que em entrevistas. Não preciso nem especificar que esta paciente é negra.
Não há feminismo viável e efetivo que desconsidere a questão racial; e o racismo, já me ensinou Grada Kilomba, é um problema branco, mas que os negros sofrem. Para o longo caminho de superá-lo, Cida Bento propõe, para começar, "reconhecer ao mesmo tempo o outro e o que somos, aprender nossos lugares recíprocos, situar os nossos papéis, identificar na estrutura de nossas organizações os elementos que fomentam a supremacia e a história que gerou ônus para uns e bônus para outros". E neste caso, nós, pessoas brancas, somos os outros.
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