Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
No hospital, postando: abismo entre vida e redes sociais se chama realidade
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Apareço sorrindo nas fotos, leve, rodeada de pessoas felizes. Quem acompanhou pelas minhas redes sociais os três eventos literários dos quais participei na última semana não pode imaginar que, entre um e outro, estive em pronto-socorros, consultas, reagendamento dos meus próprios pacientes; não pode imaginar o malabarismo para reorganizar a logística da rotina das crianças, as horas ao telefone para cuidar do seguro ou do cano de casa que estourou no mesmo dia.
Neste exato momento, por exemplo, aguardo no quarto de um hospital que meu companheiro seja levado ao centro cirúrgico; neste exato momento, também, posto no Instagram fotos que mostram minha alegria por ontem ter participado do lançamento presencial do meu próprio livro.
Cheguei à livraria em cima da hora, passando um batom no carro, direto da internação. Quem estava no evento pode ter achado que, em minha primeira resposta, eu falava rápido pelo nervosismo inerente à ocasião, e não porque o dia foi tão corrido que levou um tempo até meu corpo entender que não precisava correr também nas respostas.
Há um abismo entre a vida e as redes sociais, um abismo chamado realidade. O que não é necessariamente um problema: nem tudo deve ser postado, é importante sustentar a diferença entre o que tornamos público e o que guardamos, é importante preservar a distância que assegura que nossas experiências tenham peso, consistência, que não se esgotem na superficialidade.
É importante guardar para si a preciosidade de alguns momentos, ou mesmo a tristeza. Até porque, quando postamos sobre elas tentando desfazer o engano segundo o qual, nas redes, vivemos uma vida perfeita, transformamos essas tristezas em narrativas, que deixam de ser nossas, viram encenações no palco do nosso perfil.
Exceto na literatura. A literatura, a ficção, ou mais amplamente a arte, renunciando à representação fiel da realidade, consegue, paradoxalmente, chegar mais perto dela; despindo-se da pretensão de verdade, enfim a atinge por se saber provisória e incompleta.
Sempre me chama a atenção quando se conta um segredo em um livro, como se, entre as capas, tudo coubesse, até o que não cabe, até o que não existe; assim de cabeça me lembro agora das confissões de Noemi Jaffe em "Lili - novela de um luto", ou da cena em que Karl Ove Knausgård, no sexto volume de sua série de romances "Minha luta", escreve sobre as dificuldades de seu amigo Geir na relação com os filhos, e logo em seguida completa: eu jamais teria coragem de dizer isso a ele.
Como se as palavras, o fato de serem escritas, o protegessem; ou como se inventassem uma verdade maior, que ganharia de qualquer ressentimento ou vergonha.
A palavra, a palavra talhada, que cria mundos e assim consegue, como nada mais, dizer do nosso; a metáfora, mediação mais potente do que não conseguimos alcançar ou suportar; as invenções humanas que nos permitem confessar o inconfessável mais do que o mostraríamos em postagens diárias de cada momento de uma pessoa; a literatura, enfim, é das poucas coisas que habitam, sem suprimir, o abismo, aquele abismo: entre o que somos e o que gostaríamos de ser; entre o que nossa vida é e o que gostaríamos que ela fosse.
Quando este texto for publicado, a cirurgia já terá corrido bem, já estaremos em casa, e eu já terei diante de mim algumas semanas de caos, tendo que resolver sozinha toda a dinâmica da casa — o que só me dá notícia do privilégio que é ter com quem contar no dia a dia, já que inúmeras mulheres cuidam sozinhas da rotina dos filhos.
Provavelmente não postarei nada a respeito, mas quem sabe, talvez, escreva. Afinal de contas, uma vida perfeita não existe nem dá literatura.
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