Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
3ª temporada de 'A Amiga Genial' é réplica inferior, mas vale assistir
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Eu estava em plena licença-maternidade quando li pela primeira vez "História de quem foge e de quem fica". Talvez por isso o terceiro volume da tetralogia napolitana, de Elena Ferrante, tenha se tornado o meu preferido: o embate da protagonista Elena Greco entre escrever e cuidar das filhas se descortinava enquanto eu mesma o vivia.
Eu me sentia representada por palavras que, se por um lado deixavam à mostra meus próprios conflitos, por outro guardavam também uma espécie de mistério, como um manancial oculto de força que se insinuava ora na personagem Lila, ora na própria escrita. Foi com avidez que assisti à terceira temporada da série exibida pela HBO, mas também com alguma desconfiança.
O terceiro volume é aquele em que as questões políticas abordadas por Ferrante se manifestam mais explicitamente. As contradições jamais superadas entre a militância intelectualizada do comunismo e a vida no chão de fábrica são encarnadas em cada uma das personagens.
Questões caras ao feminismo, como a criação da mulher pelo homem ao longo dos séculos, aparecem como elaboração literária da protagonista e como motor subjacente da trama: ela só consegue escrever sobre a mulher que o homem inventa para, por sua vez, agradar a um homem, reproduzindo o problema.
O cenário é uma Itália em ebulição, parte da efervescência da Europa dos anos 1970, que a adaptação audiovisual recria bem: o imaginário ganha com o som das passeatas, das discussões políticas e dos noticiários de televisão.
Fabiane Secches, uma das maiores estudiosas de Elena Ferrante no Brasil e no mundo, escreveu recentemente sobre a ideia de que a adaptação audiovisual de uma obra literária deva ser apreciada por seus próprios méritos, com mais chances de escapar, assim, da armadilha de utilizar a fidelidade ao material original como critério de qualidade.
Essa abordagem propicia uma comparação entre livro e série que, autônomos, acrescentam elementos próprios para a compreensão recíproca das obras — o que possibilita também que sejam criticados tanto individualmente, quanto à luz do outro formato.
A voz de Raffaella Carrà em "Tuca tuca", canção de de 1971, ecoou por alguns dias em minha cabeça junto da imagem da dança de Enzo, Elisa e Elena Greco com a filha no colo. A cena é um plano-sequência do sexto episódio e um dos pontos altos da temporada, uma espécie de condensação do clima da época, em que coexistem o conflito e a festa.
O sorriso de Enzo, por exemplo, contrasta com seu desconforto de minutos antes no jantar, uma refeição em que as verdades postas à mesa servem apenas para acrescentar versões a uma realidade que se mostra cada vez mais complexa e sem solução, tanto individual quanto coletivamente.
Outros aspectos da adaptação me parecem, no entanto, afastar a série do que Fabiane Secches denominou de coração da obra, que, em uma adaptação bem sucedida, deveria ser mantido intacto às custas até da traição do material original.
Não falo, aqui, de opções que também me parecem desacertadas, como as passagens repletas de onirismo que, pela abordagem cênica realista, beiram o terror, como as que retratam, na imaginação de Elena Greco, as aparições de Lila e a da esposa de Nino com os pulsos cortados no mar. Tampouco falo da representação dos deslocamentos de Lenú pela mudança gradual do plano de fundo, o que me pareceu esteticamente duvidoso.
Falo de algo mais central, que já havia me incomodado sutilmente nas temporadas anteriores, mas que, nesta, escavou um buraco maior.
A opção pela voz em off narrando o pensamento de Elena Greco acaba por exigir da personagem (e de Margherita Mazzucco, que a representa) uma postura que parece passiva, de quem observa, e que não combina, por exemplo, com os arroubos de paixão que ela agora vive com Nino.
O que no livro tem o vigor da escrita de Ferrante, na série cai no abismo que as palavras deixam de demarcar e proteger. A Lenú da adaptação audiovisual não parece conseguir fazer a transição entre narrar a própria vida e vivê-la.
O que não destrói completamente o prazer de assistir, ainda que, desta vez, tenha me deixado um travo: a sensação de estar não no lugar que amo, mas em sua réplica inferior.
Vale a visita, ainda que ela deixe saudade do vigor de frases como: "Talvez — pensei comigo — eu tenha atribuído um peso excessivo ao uso cultivado da razão, às boas leituras, à língua bem governada, à filiação política; talvez, diante do abandono, sejamos todos iguais; talvez nem mesmo uma cabeça muito disciplinada consiga suportar a ideia de não ser amada."
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