Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
No Brasil do absurdo como diferenciar tristeza, depressão e fome?
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Se a consulta tivesse sido três semanas antes, eu teria me deparado com uma mulher entristecida, o rosto inchado de choro, um desalento no olhar. Eu provavelmente descobriria, fazendo perguntas, ouvindo e observando suas respostas, que naquele momento ela preenchia o que nós, psiquiatras, chamamos de critérios diagnósticos para depressão.
É possível que, segundo minha própria avaliação, ela precisasse de um remédio, de um antidepressivo, caso sua história anterior me desse elementos para compreender seu quadro de uma determinada maneira. Mas o fato é que a tristeza de Regina já tinha passado quando enfim conversamos: era tristeza mesmo, e não depressão, ainda que algumas vezes não seja tão simples distinguir uma da outra.
Regina é mãe de um menino e paga sozinha suas contas, mas as contas há algum tempo pararam de fechar. O salário que recebe como babá deixou de ser suficiente, os preços subindo tanto, e então o desalento, a sensação de não ter saída se convertendo em ombros caídos, em expressão murcha, em falta de alegria de viver.
Foi sua patroa, notando que ela não estava bem, quem sugeriu que fosse à psiquiatra, e foi ela quem deu a solução, que não era, afinal, remédio, mas aumento de salário, quando Regina teve coragem de pedir. Tristeza é diferente de depressão, e ambas são diferentes de fome.
Regina teve sorte, nesse Brasil em que as contas pararam de fechar para tanta gente, a inflação fazendo os preços subirem como há tantos anos não se via. Ou talvez não seja sorte a palavra exata, num país que transforma direitos em privilégios ou os chama de benefícios.
Um país que, desde 2018, voltou a fazer parte do Mapa da Fome e em que mais da metade das pessoas convivia com insegurança alimentar em 2020. O mesmo país que é um dos maiores produtores do mundo de diversos tipos de alimentos. A conta de Regina não fechava, mas também não fecha a conta deste país de desigualdades.
A fome deixa tudo amarelo, segundo a escritora Carolina Maria de Jesus. "Eu que antes de comer via o céu, as árvores, as aves, tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos."
Tristeza é diferente de depressão, e ambas são diferentes de fome, mas às vezes as três se confundem nessa mudança de cor. Porque fome mata de fome, mas de outros jeitos também. Prova disso é o fato de que, dentre os beneficiários do Bolsa Família, houve uma impressionante redução de 62% dos índices de suicídio, segundo a prévia de um grande estudo publicada em 2021 na prestigiosa revista científica The Lancet.
Fome mata também de tristeza, e tanta gente não pode pedir aumento de salário como fez Regina, ou se pede, não é atendido.
Tanta gente não tem nem salário, e se vê sem saída, e os fatores socioeconômicos, sabe-se, também são responsáveis pela saúde mental, tristeza se tornando depressão, que pode se tornar tentativa de suicídio, que pode se tornar morte. Que se torna mais tristeza para quem está ao redor. Que se torna mais uma palavra para nomear este país, um Estado que deveria cuidar de seus cidadãos e não o faz. País da fome. País do absurdo.
Se Regina tivesse sido consultada antes de conseguir o aumento de salário, eu não veria uma mulher calma, que me contava sua vida multicor. Talvez ela tivesse saído de seu atendimento com uma receita de antidepressivo, embora não fosse esse o remédio de que ela precisava (e é importante lembrar que algumas vezes, segundo critérios cuidadosos, uma pessoa pode, sim, precisar de uma medicação). Mas, ainda que tristeza e depressão possam se confundir, e ainda que a fome possa piorar a ambas, não se pode medicar um país.
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