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Natalia Timerman

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O livro 'Humanos exemplares' e a mochila que meu filho deixou num táxi

Divulgação
Imagem: Divulgação

Colunista de Universa

29/07/2022 04h00

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No fim do dia, como que tateando em busca do melhor momento para não estragá-lo, meu companheiro diz que a mochila do nosso filho ficou, ontem, esquecida no táxi. Discutimos. Não imediatamente; aos poucos, conforme lembrávamos do que se perdeu.

A blusa vermelha: a responsabilidade que as crianças precisam, sim, ter; o estojo com a escova de dentes: mas ele só tem cinco anos, a culpa não pode ser dele; a cueca reserva, caso escape algum xixi: precisamos mudar alguns fundamentos, tudo fica nas minhas costas; a própria mochila: mas você também não tira nem a louça do café da manhã. O ponto alto foi o recipiente para o lanche, justo ele, o potinho cinza que se retrai quando vazio, que abro todas as manhãs enquanto a casa ainda dorme em silêncio para colocar o sanduíche que o menino vai comer no recreio. Você precisa providenciar outro até segunda. A voz mais firme, quase gritada; rispidez.

Suspiro. As demandas, a sobrecarga, a rotina com filhos que enferruja os trilhos de qualquer casamento. Ele sobe antes para adiantar o banho, conforme tínhamos combinado, porque preciso terminar um livro a tempo de preparar as perguntas para a autora no lançamento. Fico um pouco mais no carro, esperando baixar a poeira das palavras.

Meu filho vem me dar boa noite quando já estou lendo no sofá. O livro: "Humanos exemplares", de Juliana Leite. Uma preciosidade. O olhar embaça um pouco com as lágrimas que seguro no capítulo da morte de Vicente. Não é spoiler: quem narra o livro é uma velha, e logo no começo sabemos que ela é viúva.

Mas a linguagem de Juliana enreda, o que importa não são os fatos, e sim como essa voz peculiar que ela criou oferece esse sutil enredo a quem lê. Oferece: como uma dádiva mesmo, um gesto religioso, no sentido primordial da palavra, re-ligar; o sentido primordial da literatura.

O que leio difere tanto da discussão, da mochila perdida. "Ela se abraçava como uma humana qualquer poderia se abraçar ao corpo do seu país, com braços de abraçar país, compreendendo que dentro desse amor tão grande estavam contidas tanto a esperança quanto a ruptura, tanto a luta quanto a rendição, sendo todas essas coisas um único fluxo de ambiguidade e ternura." País e amor, ambos íntimos, ambos coletivos.

Escuto os ecos da briga pela casa, no ranger dos móveis.

Escuto os passos em direção ao quarto, ainda rancorosos, depois que nosso filho já dormiu.

Continuo lendo: a velha se encontra com Vicente em um sonho. "O homem abriu um livro e leu para ela um poema que falava de ruínas. Apesar de as coisas estarem ruindo no poema, havia um verso que indicava como era possível recomeçar". Dentro do sonho, dentro do livro. Dentro de uma casa, dentro de um país.

O olho embaçado, o ranger dos móveis, e a campainha toca.
Grito: você está esperando alguém?
Pois já é noite alta.
Não.
Apreensiva, intrigada, atendo, esperando alguém que peça alguma coisa, ou mesmo alguém que queira roubar alguma coisa.

É o taxista.
O taxista, que trouxe a mochila.

Trouxe junto de presente abacates, colhidos em seu sítio; e me deu também esta coluna.
Quem atendeu a porta foi meu companheiro. Não sabemos o nome dele, do homem que trouxe a mochila do nosso filho de volta; eu chutaria Vicente.

O lançamento do livro de Juliana Leite em São Paulo será hoje, 29/07/2022, às 19h na Livraria Travessa, na rua dos Pinheiros, 513, com mediação de Natalia Timerman.