Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Sofrimentos privados em lugares públicos: por que postamos nossas dores?
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Desde que comecei a escrever colunas periódicas, minha semana passou a ter outra demarcação. Os dias que se seguem à entrega do texto são de alívio, sensação de dever cumprido, com gostinho de fim de semana em plena quarta-feira; quando se aproxima a próxima quarta e eu ainda não tenho um novo texto —às vezes sequer uma ideia decidida para ele—, vem a apreensão. É como andar numa corda bamba, porque, para escrever um texto suficientemente bom a cada vez, nada de muito trágico na minha vida pessoal pode acontecer, nada que mude o rumo dos dias, que desmonte a estrutura que a rotina aparentemente me dá.
Eis que minha mãe piorou. Minha mãe tem Alzheimer, e há alguns anos temos assistido às suas perdas; temos, com muita tristeza, acompanhado o gradual desaparecimento da pessoa que ela era. Mas nos últimos dias ela piorou muito, e a cada vez que isso acontece, eu me questiono quanto tempo de vida ela tem.
Toda vez que eu falo uma frase como essa, quanto tempo de vida alguém tem, lembro-me do Rafa, um amigo que conheci há quase 20 anos, no hospital, internado, quando minha irmã me pediu que lhe levasse alguns livros. Os médicos não sabem quanto tempo eu tenho de vida, ele falou, mas será que sabem quanto tempo eles mesmos têm?
Não sabem, claro que não. Mas em alguns casos, como o dele, como o da minha mãe, a dúvida se encurta, o futuro deixa de ser indefinido, as décadas viram anos, meses, semanas. Até mesmo dias. Até mesmo horas.
Mas eu não quero escrever sobre minha mãe. Quero deixá-la quietinha, em seu silêncio no quarto, com sua respiração profunda, o olhar alheio, que já não me vê depois de uma convulsão. Quero preservá-la, jamais usar seu sofrimento como mote, como tema, como algo que vai ser lido por gente que sequer a conhece, alvo de algoritmo, cliques e likes.
Eu já havia me questionado coisas semelhantes na doença, na morte, no luto pelo meu pai, sempre que escrevia e publicava algo nas redes. Por que postar? Por que refletir dessa forma, em público, com textos escritos no Instagram e não nas páginas do meu diário? Por que mostrar o rosto dos que amamos a quem não conhecemos, ou a quem conhecemos de longe, essas pessoas, os seguidores, que não partilham do nosso cotidiano?
E no polo oposto, o da alegria: por que postei, por exemplo, fotos da minha irmã no aniversário dela? Isso valeria mais, será, do que um telefonema, o meu abraço, ou cantar parabéns entre a família? Que tipo de apelo seria esse, afinal?
Em que momento a declaração pública em um post virou uma espécie de medida de afeto, de garantia de apreço, de asseguramento de existência?
Talvez a postagem possa fazer parte da elaboração, tanto da tristeza, quanto da alegria; talvez possa ser uma espécie de comunhão, em que ser lida e ler operam algum tipo de encontro, o encontro possível, ou uma transformação, ainda que ínfima. Ou talvez seja só mais uma das tantas manifestações da dinâmica dos nossos neurotransmissores, já irremediavelmente ávidos pelos números que a entrega do algoritmo proporciona, mesmo quando o assunto é dos que mais importam na vida de uma pessoa. Mesmo quando é sobre nascer e morrer.
Mas eu não queria escrever sobre a minha mãe. Pelo menos não hoje. Pelo menos não nesse tempo dela, esse estar mais perto do fim, que me pede —exige— recolhimento e silêncio. Pois, como li em "Outono", de Karl Ove Knausgård, uma pessoa que sente dor está sempre, inevitavelmente, sozinha.
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