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Natalia Timerman

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O sequestro da língua e da verdade por Bolsonaro

baona/Getty Images/iStockphoto
Imagem: baona/Getty Images/iStockphoto

Colunista de Universa

26/08/2022 04h00

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"Foi só uma gripezinha", escutei, não na fala do presidente, mas de uma paciente durante o atendimento. Ela contava sobre os sintomas gripais que a acometeram na última semana; minha concentração, no entanto, escoou imediatamente pelo ralo aberto pelo diminutivo, a voz de Bolsonaro se fazendo presente através do termo, e junto dela, as tantas mortes que seu manejo desastroso da pandemia não evitou.

Alguns dias depois, outra paciente, referindo-se ao esforço que precisava, mas não conseguia empreender para vencer a sobrecarga de trabalho, disse que havia "dado uma fraquejada". Novamente: a palavra como um apito no ouvido, remetendo a outra coisa, transportando a outra situação, o então deputado federal Bolsonaro caracterizando o nascimento de sua quinta filha, a primeira mulher, como resultado de uma suposta perda de vigor. Minha paciente talvez não tenha percebido que, por trás do meu olhar, que eu me esforçava para manter atento a ela, havia a mesma raiva que eu e tantas mulheres sentimos quando escutamos a fala do deputado, o termo fazendo a vez de uma espécie de gatilho (outra palavra perigosa hoje em dia) da engrenagem de algo como um trauma, que retorna desavisada e dolorosamente por falta de elaboração.

De certa forma, há, sim, algo de traumático no que estamos vivendo.

Outro dia, passei na frente de um salão de beleza de nome Damares. Provavelmente sempre se chamou assim, mas só agora, depois da destruição generalizada que a passagem de Bolsonaro pelo governo causou no Brasil, perpetrada em conjunto por ele e seu aparelho de governo, o estabelecimento me chamou a atenção.

Bolsonaro parece ter operado uma espécie de sequestro da língua, instituindo, pelo uso, termos que cavam túneis do cotidiano até o desconforto de quando foram escutados de sua malfadada boca pela primeira vez.

É como se tivéssemos perdido parte do nosso vocabulário; é como se parte da língua não mais estivesse à nossa disposição, mas tivesse, pelo contrário, sido voltada contra nós.

Mas o mais grave não é isso.

Em "LTI - A Linguagem do Terceiro Reich", Victor Klemperer faz, com base em seus diários, uma análise da ascensão do nazismo através da língua. "A língua conduz o meu sentimento, dirige a minha mente, de forma tão mais natural quanto mais inconscientemente eu me entregar a ela. O que acontece se tiver sido construída ou for portadora de elementos venenosos?", ele questiona.

Pode parecer, para alguns, exagero comparar a situação que vivemos ao nazismo, mas, segundo o Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil, as ocorrências de episódios neonazistas, como referências explícitas a Hitler e ao holocausto, têm quase dobrado anualmente desde a posse de Bolsonaro como presidente. Só isso já seria preocupante, mas o que ele conseguiu fazer é ainda pior.

Klemperer afirma que "a linguagem sempre revela o que uma pessoa tem dentro de si e deseja encobrir, de si ou dos outros, ou que conserva inconscientemente. Uma pessoa pode fazer declarações mentirosas, mas o estilo deixará as mentiras expostas". Ora, aqui ainda há uma preocupação em pelo menos esconder as mentiras, por trás da qual está o respeito à realidade como fundamento e valor.

Bolsonaro e sua metralhadora cotidiana de absurdos nos legaram uma situação, sob um aspecto, ainda mais problemática que a exposta em "LTI - A Linguagem do Terceiro Reich": ele sequer tenta esconder suas mentiras, que não estão nem precisam estar ocultas em seu discurso: elas simplesmente compõem a estrutura desse discurso.

Bolsonaro não procura nem precisa mais esconder que mente. O que entra em jogo não é a língua, mas a própria verdade. A realidade está sendo cotidianamente colocada em questão, e o pior é que já estamos nos acostumando a isso.

Que ele saia do poder direto para os porões da História. Antes que seja tarde.