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Natalia Timerman

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Preciso dizer não: agruras de uma escritora que pretende terminar seu livro

"Finalmente entendi que as 24 horas do dia não são suficientes para tudo o que eu quero fazer" - Photo by Ales Krivec on Unsplash
"Finalmente entendi que as 24 horas do dia não são suficientes para tudo o que eu quero fazer" Imagem: Photo by Ales Krivec on Unsplash

Colunista de Universa

02/09/2022 04h00

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Eis que finalmente entendi: as 24 horas do dia não são suficientes para tudo o que eu quero fazer. A pessoa que eu gostaria de ser dispõe de tempo de sobra para oferecer à família, aos amigos, à profissão, à literatura, mas essa pessoa não existe, nem o tempo necessário para toda a sua perfeita grade de atividades. Quem existe sou eu, as 24 horas do dia e essa bagunça que se acumula na minha casa.

Se a volta do planeta ao redor de si mesmo me oferecesse mais horas, ou se eu não tivesse que dormir em pelo menos oito delas, talvez desse. Talvez eu conseguisse ler toda a montanha de próximos livros que se acumula na cabeceira da minha cama (isso daria uma coluna), estar com meus filhos sem ter que resolver coisas no celular (isso também), ir em todas as festas e encontros de amigos (idem), aceitar cada convite para eventos literários (e chegamos ao assunto desta coluna aqui).

Pois quero e preciso terminar o romance que estou escrevendo, e o tempo nunca chega. O tempo nunca dá, distribuído entre tantas outras coisas, o barulho da rotina, as horas que voam, disputadas por cada interesse meu, e eis que finalmente entendi: as 24 horas do dia não são suficientes para tudo o que eu quero fazer. E então eu preciso escolher. O que significa nada mais, nada menos que eu preciso dizer não.

Até porque, para escrever --e também para ler-- eu necessito não só de tempo, mas principalmente de silêncio. E por mais que eu goste do burburinho literário, de participar de debates, festas, lançamentos e conversas, literatura é quase sempre silêncio.

Mas como é difícil dizer não. Não só no momento de responder a convites: também depois. Dia desses, dei de cara com a divulgação de uma coletânea de contos muito bacana, e a primeira sensação que identifiquei foi a de exclusão, me senti instantaneamente deixada de lado. Demorou alguns segundos —o raciocínio vindo em socorro do meu corpo ao passar os olhos pelos nomes dos autores— para eu me lembrar de que, sim, eu fora convidada a participar, mas eu mesma havia recusado. Parece que a tal F.O.M.O., Fear of Missing Out, fenômeno ubíquo de nossos tempos, pode se dar mesmo quando não estar presente tenha sido uma escolha.

O esforço hercúleo que preciso fazer a cada vez que digo não sugere que, findo o livro que estou escrevendo, volto a aceitar todos os convites. Mas eu não quero que seja assim. Quero o oposto: quero que dizer não deixe de ser tão difícil. Que eu possa me sentir em paz a cada vez que entender que é hora de me recolher. Não só para escrever.

Pois como pontua Hannah Arendt em "A Condição Humana": "Uma existência vivida inteiramente em público, na presença dos outros, torna-se, como diríamos, superficial. Retém a sua visibilidade, mas perde a qualidade resultante de vir à tona a partir de um terreno mais sombrio, terreno este que deve permanecer oculto a fim de não perder sua profundidade num sentido muito real e não subjetivo. O único modo eficaz de garantir a sombra do que deve ser escondido contra a luz da publicidade é um lugar só nosso, no qual podemos nos esconder."

E do qual, no momento propício, poderemos sair. Pois é só aprendendo a dizer não que podemos, enfim, dizer sim.